Fernando Gabeira: As raízes intelectuais da tragédia ianomâmi

A visão negacionista de Bolsonaro, e infelizmente de muitos militares, se articulou com o catequismo evangélico

Os mais novos não se lembram da grande fome na antiga Biafra, que pertenceu à Nigéria. Eram impressionantes as imagens das crianças, com os ossos salientes na pele. Na verdade, uma antevisão da morte, pois assim ficamos quando repousamos para sempre. É difícil aceitar que imagens semelhantes apareçam agora no Norte do Brasil: esquálidas crianças ianomâmis sendo resgatadas às pressas.

Meu primeiro contato com os ianomâmis foi na Suécia, quando estudava antropologia. Era um documentário sobre um povo altivo. Na volta ao Brasil, pude visitar algumas aldeias remotas ianomâmis, na condição de deputado, usando helicópteros do Exército. Naquele momento, o governo Fernando Collor já tinha demarcado os 181 mil quilômetros quadrados do território ianomâmi. Mas sempre houve contestação. A mais simples era esta: não é muita terra para pouca gente? Temos visões diferentes. Nem todas as áreas são para a produção, algumas são apenas sagradas.

O coronel Carlos Alberto Menna Barreto publicou pela Biblioteca do Exército um livro intitulado “A farsa ianomâmi”. Sua tese é que os ianomâmis não existiam como cultura singular, viviam misturados aos outros indígenas. Na visão de Menna Barreto, eles foram inventados pela fotógrafa de origem suíça Claudia Andujar. Como se fosse possível, mesmo para uma fotógrafa excepcional como Claudia, inventar uma cultura, uma religião, um punhado de mitos fundadores. A visão do militar era que houve uma conspiração internacional para demarcar as terras ianomâmi, com ajuda da Survival, entidade voltada para os direitos indígenas, e até mesmo do então príncipe Charles, hoje rei da Inglaterra.

Não foi acidental a resposta de Bolsonaro às denúncias sobre a fome entre os ianomâmis: uma farsa da esquerda. O ex-presidente jamais aceitou a demarcação das terras ianomâmis. Quando deputado, apresentou um projeto para anulá-la. Conseguimos evitar sua aprovação no plenário, depois Almino Afonso e eu o enterramos nas comissões. A história está contada por Lira Neto no Diário do Nordeste e contém fragmentos de nossos discursos.

Bolsonaro chegou a presidente com grande simpatia pelos garimpeiros (ele chegou a pensar em se tornar um deles), com a visão de que os ianomâmis não deveriam ter suas terras e, como os outros indígenas, precisavam se integrar à sociedade nacional. O problema para essa concepção é que temos uma Constituição, e nela está assegurado o direito dos indígenas a suas terras, cultura e religião.

Para dizer a verdade, há muitos anos o grande líder ianomâmi Davi Kopenawa denuncia a destruição de seu povo e da própria floresta. Ele escreveu o livro “A queda do céu” em parceria com o antropólogo Bruce Albert.

A visão negacionista de Bolsonaro, que infelizmente também é a de muitos militares, acabou se articulando com outra: a do catequismo evangélico. O governo destinou R$ 840 milhões a uma entidade evangélica para cuidar dos índios, para tentar atraí-los para a religião branca. A então ministra Damares Alves recusou-se a seguir um projeto no Congresso que obrigava o governo a destinar água potável aos indígenas durante a pandemia. Argumento: eles não foram ouvidos. Como assim? Sempre denunciaram que sua água estava contaminada pelo garimpo.

Algumas vezes denunciei na TV o ataque dos garimpeiros contra os ianomâmis. Entrevistei Júnior Yanomâmi em Brasília, e ele passou esses anos pedindo ajuda. Crianças foram assassinadas, adolescentes se prostituíram, o álcool foi disseminado. Nada disso tocou o governo Bolsonaro. Afinal, a integração à sociedade branca se faria por violência, corrupção e dissolução dos costumes originários.

Os garimpeiros estão associados aos traficantes de drogas e fortemente armados. Não é fácil entrar lá. Um grupo de deputados tentou chegar às aldeias, mas não conseguiu apoio do Exército com seus helicópteros. Toda a história foi construída para que os garimpeiros varressem os ianomâmis do mapa. O Brasil precisa dar numa resposta ao genocídio antes que o próprio mundo a dê. A antecipação fica melhor para nós todos, inclusive para os culpados. (O Globo – 30/01/2023)

Fernando Gabeira, jornalista e escritor

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