Merval Pereira: Acertando os ponteiros

Com a crise latente entre Força Armadas e governo, é sensata a reunião do presidente Lula com os comandantes militares

A crise latente entre as Forças Armadas e o governo recém-eleito é consequência da politização dos militares levada a cabo pelo ex-presidente Bolsonaro, com a intenção de que apoiassem o golpe militar que articulava desde mesmo a campanha presidencial de 2018. Mas também do descaso da sociedade e dos políticos em discutir o papel dos militares num governo democrático, dando importância a suas demandas e projetos.

O apoio das Forças Armadas ao golpe de Estado tentado no dia 8 de janeiro não aconteceu de maneira formal, mas setores militares aderiram, participando como ativistas ou facilitadores do vandalismo. Segundo Adriano de Freixo, professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, num estudo sobre os militares e o governo Bolsonaro que já abordei aqui na coluna antes dos acontecimentos recentes, as Forças Armadas têm dificuldade para lidar com o controle civil desde quando foi criado o Ministério da Defesa, que deveria ter sido comandado sempre por um civil.

A decisão do então presidente Michel Temer de colocar um militar na função, quebrando a sequência de civis, reforçou essa dificuldade. Fatores como revigoramento da ideologia anticomunista; o desejo dos militares de retomar o protagonismo e o “prestígio” perdidos; insatisfações ou demandas corporativas; temor de interferência do PT no currículo das escolas militares foram razões para a adesão dos militares à campanha de Bolsonaro, que prometia solucionar essas questões como fazia quando candidato a deputado federal representante dos militares.

Existe também, como pontua o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann, “o alheamento/alienação do poder político e elite civil das suas responsabilidades com a defesa nacional e de liderar os militares”. Essa é, segundo Jungmann, uma “questão nacional e democrática central”. Ele afirma que dialogar e liderar as Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil é um imperativo para o país como nação soberana:

— Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as Forças Armadas, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e às nossas elites é também uma questão democrática, incontornável e premente.

Jungmann lembra que, em novembro de 2016, o então presidente Temer enviou ao Congresso Nacional a Política e a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional. Até hoje, por questões político-partidárias, vigem os textos de 2012. Ao longo dos anos de tramitação, os textos de 2016 não foram objeto de nenhuma audiência pública no Congresso, e o que seria a oportunidade para deputados e senadores participarem da formulação de uma política nacional de Defesa foi perdida por desinteresse.

Quando participou em Brasília da 15ª Conferência de Ministros da Defesa das Américas, em julho, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, incluiu como a afirmação do papel dos militares numa sociedade democrática “o respeito às autoridades civis, aos processos democráticos e aos direitos humanos”. Nunca é demais lembrar o que aconteceu nos Estados Unidos quando, ao contestar o resultado das eleições presidenciais de 2020, o então presidente Donald Trump incentivou a invasão do Capitólio em Washington.

A principal autoridade militar dos EUA, o chefe do Estado-Maior Conjunto, general Mark Milley, tão preocupado estava com que Trump e seus aliados tentassem um golpe, que entrou em contato com líderes políticos na Câmara e no Senado para organizar a resistência. Ao contrário do que aconteceu aqui, onde o Ministério da Defesa e o Gabinete de Segurança Institucional participaram da tentativa de desacreditar as urnas eletrônicas. Por isso soa como inteligente e sensata a reunião do presidente Lula com os comandantes militares, seus subordinados como manda a Constituição, partes fundamentais de um projeto de desenvolvimento nacional. (O Globo – 19/01/2023)

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