Míriam Leitão: No deserto, a visão da floresta

Marina fala sobre como pode ser a reconstrução da política ambiental no país e diz que o mundo quer ajudar o Brasil

Marina viajou pelo deserto no Egito. “Foram quase três horas até o Monte Sinai e comecei a ficar angustiada. Quando os cientistas dizem que o desmatamento transformará a Amazônia em um deserto é disso que se trata. Nós temos esse privilégio, produzimos a nossa própria chuva. O agronegócio é uma potência porque temos essa potência florestal, uma parte do agronegócio já entendeu isso”. A Amazônia é de fato uma fábrica de chuvas para todo o país. É esse patrimônio que o governo Lula quer de novo proteger, mas agora será muito mais difícil do que há vinte anos porque o crime avançou muito. A ex-ministra sabe o que é preciso fazer para reconstruir a ação do governo nessa área. Ela defende também a criação de um órgão técnico, que tem sido chamado de Autoridade Climática.

— O presidente Lula deu o sinal, durante a campanha e agora diante da comunidade internacional, de que a questão ambiental terá alta prioridade em seu governo. Os instrumentos da ação governamental terão que ser atualizados, e alguns mantidos, como o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento, o PPCDAm. Houve um desmonte das instituições de monitoramento, de fiscalização e de gestão. Houve também uma desconstrução dos orçamentos. Equipes técnicas foram substituídas por policiais sem afinidade com a questão ambiental. O governo punia os agentes quando eles combatiam criminosos e mudava as leis para elas ficarem em conformidade com o crime —afirmou Marina Silva em uma entrevista que me concedeu para a Globonews.

Ela concorda que o governo tem que ser da frente democrática, mas ressalta o protagonismo do PT.

— A Frente Ampla precisa entender que o PT é majoritário, foram eles que estiveram com o presidente Lula durante todo o tempo. Quando surgiu aquela ideia de usar mais branco, ouvi algo que me tocou muito. Duas pessoas simples conversando e um disse. ‘Estão querendo tirar o nosso vermelho, mas quando a gente estava na porta da prisão em Curitiba era com as bandeiras vermelhas’. Temos que ter muita sensibilidade para isso.

Marina voltou agora da COP 27, no Egito, e lá conversou com todo mundo que era relevante. Perguntei o que ela ouviu de John Kerry, o representante do governo Biden para o clima.

– A primeira coisa que John Kerry me disse foi parabenizar o Brasil. Falou da alegria que os Estados Unidos e ele pessoalmente tinham em ver o Brasil voltando ao protagonismo da agenda climática e reassumindo seu compromisso com a democracia. E falou em vontade de cooperar financeiramente com o Brasil. Ouvi o mesmo dos ministros da Alemanha, Noruega, Reino Unido, Canadá, diretores do Banco Mundial.

Na visão da ex-ministra do Meio Ambiente, o presidente Lula tem demonstrado em todos os seus atos e discursos absoluta consciência da centralidade do problema ambiental e climático e como isso inclui a questão social, que sempre o preocupou, e inclui também a defesa dos povos indígenas. Sua ida à COP mostrou isso.

Marina defende a ideia de que o governo crie uma espécie de autoridade climática, inspirada na autoridade monetária, ou na de risco nuclear que já existem. Para que haja alguém de perfil técnico acompanhando a redução das emissões de gases de efeito estufa.

– O Brasil é um país vulnerável. A agricultura já está pagando um preço alto pelo desequilíbrio climático.

Outro ponto sensível da nova política ambiental é a da energia. Foram exatamente o conflito com o agronegócio e sua divergência em relação às hidrelétricas na Amazônia que a separaram do PT, de Lula. Sobre a energia, ela lembrou as declarações recentes de Lula em favor de que só sejam feitas na Amazônia as usinas cujo aproveitamento não impliquem em riscos para o meio ambiente e para a população local. E ele considera que há outras fontes, como solar, eólica e biomassa.

Marina gosta de tons terrosos. Assim é sua roupa, sua maquiagem e seus enfeites da artesania indígena. Ela é terra, e usou a imagem do barro para falar da reaproximação com Lula depois de tanto distanciamento.

– O presidente Lula está em paz, eu estou em paz. É como se houvesse uma argila endurecida, mas essa crise e o risco que a democracia correu amoleceram a argila. Quando vi tantos segmentos no palanque pensei em como isso era potente. Foi por um triz que a gente não perdeu. E o Brasil não podia perder. Agora temos que ter como governar. (O Globo – 24/11/2022)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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