Fernando Gabeira: Transição de onde para onde?

Discute-se como se gastará mais dinheiro necessário para pagar promessas, mas não há a mínima inquietação ainda sobre a origem desses recursos

Apesar da resistência de alguns grupos bolsonaristas que bloquearam estradas, choraram com a prisão de Alexandre de Moraes, aclamaram a intervenção de Lady Gaga no Tribunal de Haia e acreditaram que a cantor Agnetha Faltskog, do Abba, era uma juíza sueca, apesar de tudo isso, estamos em transição. Embora saibamos que é uma transição do velho para o novo governo, não podemos afirmar precisamente de onde para onde é essa transição.

Para saber de onde, é preciso conhecer todos os dados que ainda estão sendo transferidos. Eles nos mostram o estado geral do País, depois de quatro anos de governo Bolsonaro.

Depois desse movimento, saberemos, então, para onde vamos. O novo governo não apresentou um programa. Os argumentos para isso se baseiam na própria ignorância sobre o estado real do País. De posse dessa informação, é possível que conheçamos, então, as principais políticas públicas que vão conduzir o País.

Já sabemos, por exemplo, que há uma ruptura na política ambiental destrutiva de Bolsonaro. A viagem de Lula ao Egito é uma clara indicação ao mundo de que o Brasil pretende proteger a Amazônia e voltar ao protagonismo internacional na luta contra o aquecimento global.

Essa é uma importante novidade, porque não se limita à política ambiental. Tem repercussões na economia, de um lado atraindo investimentos para projetos sustentáveis, de outro liberando investimentos em infraestrutura inibidos pela visão suicida de Bolsonaro no trato com o meio ambiente.

Abre-se o horizonte para empregos verdes, e isso pode ser um dos motores da economia nacional. Só a recuperação da área degradada na Amazônia, potencialmente, ocuparia milhares de pessoas.

Outro componente que poderia ser um dínamo em novo impulso é o avanço digital. A ampliação do acesso digital significa aumentar as possibilidades de renda dos mais pobres, sem contar a chance de estudo das crianças que estão ficando para trás no medíocre sistema de ensino brasileiro.

Mas não é só no âmbito individual que o avanço tecnológico pode abrir novos caminhos. Um governo inteligente é mais barato e eficaz. As grandes somas em ajuda social poderiam ser mais certeiramente distribuídas. A Índia economizou milhões de dólares ao implantar o número individual e cadastros eletrônicos.

Até o momento, a transição não indica nenhum rumo, exceto o do cumprimento de promessas de campanha, tais como a ajuda de R$ 600, a recomposição das verbas da merenda escolar, o Farmácia Popular e o aumento do salário mínimo.

O debate se trava em torno dos instrumentos que permitem ao governo arcar com essas despesas. Medida provisória, PEC, alteração no teto de gastos. A imprensa se dedica a analisar cada uma dessas saídas, embora a decisão final seja do governo, que sabe melhor o que lhe interessa.

Se olharmos o médio prazo, esse debate pode parecer, no fundo, um exercício de magia. Discute-se como se gastará mais dinheiro necessário para pagar promessas, mas não há a mínima inquietação ainda sobre a origem desses recursos.

No universo particular, decide-se gastar o dinheiro sem nenhuma preocupação com PECs ou medidas provisórias. A única condição é a existência do dinheiro.

Quando se trata de governo, o debate é principalmente sobre instrumentos, a existência do dinheiro fica em segundo plano.

Mas uma das interrogações sobre os futuros projetos de governo é exatamente esta: onde conseguir dinheiro para financiá-los?

Naturalmente que a chegada de dinheiro de fora e o próprio dinamismo do crescimento econômico oferecem uma resposta para aumento da arrecadação. Mas será que isso basta? Há espaço para imposto indireto? A passagem para um governo inteligente poderia ajudar. Não creio que o tema redução de gastos seja viável com o anúncio de novos ministérios e a existência de uma ampla frente que necessita de espaço no novo governo.

Toda essa reflexão sobre financiamento parece extemporânea. No entanto, creio que nasce daí a primeira grande condição para a sobrevivência de uma frente democrática.

Sem resolver esse problema, caímos num processo inflacionário, abrindo uma brecha para o retorno das forças rechaçadas pelas eleições.

O que está acontecendo nos EUA é muito significativo. Houve um debate sobre aborto e pensou-se que ele seria decisivo nas eleições parlamentares que se realizam agora. Mas logo se constatou o problema central que certamente ameaçou o poder dos democratas: a inflação.

Como os EUA passaram por um processo semelhante ao nosso, com a vitória sobre Trump, é possível definir a inflação como um grande fator de instabilidade política. Não me refiro apenas às perdas reais no poder de compra, mas também à capacidade de provocar a volta de forças de oposição que, usando temas econômicos, podem retomar seu trabalho de desmonte das instituições democráticas.

Na campanha que se encerrou, Bolsonaro centrou sua tática na pauta de costumes. Ainda assim, as dificuldades econômicas minaram seu prestígio. Certamente, a extrema direita aprendeu a lição. Resta saber se as forças democráticas analisam dessa forma ou se, a esta altura, já se colocaram este remoto problema da volta dos derrotados de 2022. (O Estado de S. Paulo – 11/11/2022)

FERNANDO GABEIRA, JORNALISTA

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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