Fiscalização das urnas por militares e caso das venezuelanas são caso de polícia
O ministério da Defesa tem de entregar ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) o relatório da fiscalização eleitoral ou de seja lá o que fuçaram nas urnas na eleição de 2 de outubro. O prazo acaba na quinta-feira (20), tempo bastante para que se invente alguma desculpa, farsa ou chicana a fim de se burlar a boa-fé.
Para explicar sua decisão, Alexandre de Moraes, ministro do TSE, afirmou também que esse trabalho das Forças Armadas pode ter sido em favor de um candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL), o que em tese é desvio de finalidade e abuso de poder.
Ou seja, é suspeita de crime de militares em favor de um presidente-candidato. A gente não liga mais, pois a delinquência oficial foi normalizada, mas isso é muito grave.
Se bolar uma chicana ou entregar um papelucho farsesco, o ministério que administra as Forças Armadas terá procedido outra vez segundo o padrão do bolsonarismo: se flagrado, ainda mais sob risco de cadeia, minta, camufle ou choramingue pedindo desculpas como um covarde cínico.
É apenas uma das espécies de conduta mentirosa do gênero bolsonarista. Em geral, o programa é disseminar a confusão na conversa pública, desacreditar o debate e a pesquisa objetivos e, se puder, proibi-los —vide a ofensiva contra as pesquisas de opinião.
A covardia cínica é o modo de agir de Bolsonaro, como ficou outra vez evidente no caso das meninas venezuelanas que chamou de prostitutas. É também o caso de Damares Alves (Republicanos), senadora eleita pelo Distrito Federal, ex-ministra de Bolsonaro, que alardeou a história do tráfico de crianças pequenas para prostituição.
Trata-se de crimes nojentos. Bolsonaro e Damares até agora não disseram que providência tomaram em relação aos delitos de que tiveram conhecimento —se nada fizeram, é crime. Bolsonaro pediu desculpas chorosas com o fim de fazer propaganda eleitoral. Damares desconversou.
O ministério da Defesa, seu comando militar e outros oficiais superiores fizeram parte da campanha do presidente de desacreditar o método de votação brasileiro, ofensiva que era parte das campanhas golpistas de Bolsonaro (se ele perder a eleição, não vale).
Mais especificamente, esses militares disseram que fariam alguma espécie de fiscalização do sistema de votos e apuração. Usaram recursos públicos para tanto e, até agora, passadas mais de duas semanas da eleição, não se manifestaram publicamente sobre o assunto.
O plano militar era confuso o bastante para facilitar a burla. Podem dizer agora que não auditaram ou fiscalizaram nada e, portanto, não têm nada para entregar ao TSE. Seria uma chicana óbvia. É a estratégia ouvida de gente do Planalto.
Impedir que qualquer debate público seja razoável é o padrão de conduta bolsonarista. Isto é, abolir a conversa baseada em princípios aceitos de diálogo racional, no conhecimento das melhores informações disponíveis e na boa-fé.
Qualquer adulto sabe que a política atropela frequentemente esse corpo de princípios. Mas o bolsonarismo o tortura e o assassina; vilipendia o cadáver e o enterra em vala comum, em local desconhecido.
A guerra suja bolsonarista começa a suscitar reações da mesma categoria, vide a imundície crescente da campanha eleitoral. Sob Justiça tardia e pontual, quando não inoperante, salve-se quem puder.
Bolsonaro mente sem limite sobre qualquer coisa: sobre vacinas, estatísticas oficiais de emprego, urnas, ditadura militar, fantasmas da rachadinha. Não é ocasional, é mais do que um padrão: é um plano. Onde não houver confusão, haverá censura (sigilos de cem anos, proibição de pesquisas). A autocracia já é uma obra em progresso. (Folha de S. Paulo – 19/10/2022)
Vinicius Torres Freire, jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA)