Maria Clara R. M. do Prado: O risco de autocracia está à espreita

É sob o regime democrático que se pode alcançar desenvolvimento sob a ótica social e econômica

Há muito tempo, talvez desde a campanha das “Diretas Já”, a palavra democracia não foi tão falada, escrita, lembrada e exaltada no país com sinais de alerta e doses de preocupação. A defesa do regime democrático tem crescido desde o início desta temporada eleitoral a ponto de ganhar recentemente demonstrações de apoio concreto ao candidato Luiz Inácio Lula da Silva por pessoas influentes, intelectuais e representantes de segmentos da sociedade civil, que até então sequer imaginavam a possibilidade de votar no PT.

A percepção de que há muito mais em jogo do que uma simples disputa eleitoral falou mais alto para aqueles apoiadores de última instância, acentuando a polarização não entre um partido de esquerda e outro de direita, mas entre o bem e o mal. Desde o início, parecia claro que a chamada terceira via teria poucas chances de emplacar e o que se vê nesta reta final é um esforço descomunal de muitos formadores de opinião no sentido de evitar a reeleição de Bolsonaro, encarnado na figura do mal que ele mesmo construiu ao longo do governo.

O presidente nunca deixou de dar indicações claras de descaso relacionadas à educação, saúde, segurança, cultura e meio ambiente, mas foram as suas declarações sobre o processo eleitoral, a configuração da Suprema Corte de justiça e os meios de comunicação que chamaram a atenção para os riscos de o país caminhar para uma autocracia.

A rigor, as falas de Bolsonaro estão dentro do script adotado pela maior parte dos autocratas que nas últimas décadas têm se perpetuado no poder através da captura de mecanismos típicos da democracia, como o voto direto. A mudança de regime político é feita aos poucos. Ao invés de tanques nas ruas, censura explícita, prisão e tortura em massa dos adversários políticos, características das autocracias “tradicionais”, utiliza-se uma retórica calcada na disseminação do medo e em ameaças com apelos populistas.

Como reconhecer um autocrata legalista em ação? Kim Lane Scheppele, catedrática de sociologia e de assuntos internacionais da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, traça o perfil: “Deve-se primeiramente suspeitar de legalismo autocrático em um líder democraticamente eleito quando ele lança um deliberado e sustentado ataque às instituições cuja função é colocar em xeque suas ações ou às regras que lhe impõem limites e deveres, mesmo quando ele age assim em nome do mandato democrático”, diz ela no artigo “Autocratic Legalism” (Legalismo Autocrático), um dos textos de referência para o entendimento do fenômeno que tem ganhado força neste século.

“Os novos autocratas não apenas se beneficiam da crise de confiança nas instituições públicas; eles atacam os princípios básicos do constitucionalismo liberal e democrático porque querem consolidar poder e permanecer na liderança pelo maior tempo possível”. Para atingir o objetivo, valem-se da aparência de que tudo transcorre dentro das quatro linhas da Constituição, enquanto usam o mandato para derrubar os obstáculos que os impedem de governar com autonomia, sem prestação de contas nem riscos de serem investigados. Quando obtêm uma soma confortável de apoios no Congresso ou no parlamento, o processo de reversão definitiva do regime torna-se mais seguro e mais rápido.

Como se sabe, não são poucos os líderes que têm recorrido ao legalismo autocrático para permanecerem no poder via eleições diretas sob o manto de dispositivos convenientes introduzidos no texto da Constituição. Desde Putin na Rússia e de Chávez/Maduro na Venezuela, os exemplos têm se propagado com Orbán na Hungria, Erdogan na Turquia e Duda na Polônia. Para os interessados, o processo de confisco da democracia está bem explicitado no texto “O Caminho da Autocracia: estratégias atuais de erosão democrática”, de estudiosos do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) – laut.org.br/o-caminho- da-autocracia/

Apesar da farta documentação das técnicas usadas pelos autocratas “modernos”, a percepção do modus operandi e dos riscos associados à mudança do regime político não está disseminada na sociedade brasileira nem mesmo entre os acadêmicos. Em nome do liberalismo econômico, há uma resistência de importantes segmentos das áreas empresarial e financeira em aceitar os direitos sociais garantidos na Constituição e que só se consegue manter sob um regime democrático pleno sujeito ao escrutínio de instituições independentes.

No fundo, existe uma dicotomia entre a ideia de que a economia evolui melhor quanto menor for a interferência do Estado e os princípios do Estado de Direito liberal que garantem liberdades e direitos individuais para todos. Por exemplo, o objetivo de erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais, inscrito na Constituição, só pode ser alcançado com medidas de forte intervenção do governo na economia.

Quanto mais predominante for a defesa do liberalismo ou neoliberalismo econômico, maior será o eco favorável ao autocrata de direita que opera para ampliar o poder de decisão e de fazer cumprir, sem oposição, medidas de apoio a grupos específicos em detrimento dos interesses da sociedade. O refrão “deixar passar a boiada” vai nessa linha. Nas autocracias de esquerda, as liberdades individuais são comprometidas por um Estado onipresente que direciona a iniciativa privada em prol da massa assalariada e subordina a economia de acordo com os interesses de integrantes do governo.

No entanto, é sob o regime democrático que se podem alcançar níveis de desenvolvimento abrangente não apenas sob a ótica social, mas econômica, tendo em vista a possibilidade de expansão das oportunidades individuais que levam ao crescimento do mercado em geral, do consumo e da renda, em benefício de um maior contingente de pessoas e de empresas. (Valor Econômico – 18/10/2022)

Maria Clara R. M. do Prado, jornalista e sócia-diretora da Cin – Comunicação Inteligente. Entre 1994 e 1995, foi coordenadora de Divulgação do Plano Real. Foi correspondente em Londres

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