Luiz Gonzaga Belluzzo: A privatização do Estado

O Estadão informa: “Um relatório divulgado na terça-feira pela ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública revela o aumento de registros de pessoas autorizadas a possuir armas nos país nos últimos anos. A flexibilização promovida pelo governo de Jair Bolsonaro fez subir em 474% o número de cidadãos armados no território nacional.”

Essa proeza armamentista se desenrolou sem contraposição das forças policiais e militares que, no Estado Moderno, deveriam envergar as prerrogativas do monopólio da violência.

Os militares e policiais brasileiros certamente não estudaram Thomas Hobbes nas Academias de Polícia ou Agulhas Negras. Se tivessem passado os olhos no Leviatã talvez entendessem que a proposta de armar a população significa dispensá-los das funções que a Constituição lhes atribui. É o colapso do Estado Moderno, o naufrágio do liberalismo político e a entrega da (des) ordem às milícias privadas.

Os bolsonaristas declararam guerra aos demais. Uma declaração de guerra apoiada no pretexto do antipetismo, do anticomunismo e anticristaníssimo travestido de pentecostalismo. Eles estão conclamando os aliados e – atenção!! – também os adversários para a guerra civil. Essa é forma que assumem as divergências sociais quando as regras da convivência pacificada pelo Estado são massacradas pelo retorno à barbárie.

Observador das turbulências que assolaram a sociedade inglesa no século XVII, Thomas Hobbes imaginou que o terror disseminado pelos bandos privados na luta religiosa só poderia ser contido pela concentração do poder e da força no Leviatã. Para ele, a visão da sociedade em que os homens conviviam pacificamente só pode surgir quando o Estado está consolidado, em que todos estão submetidos às leis emanadas do Soberano.

Hobbes surpreende a sociedade dos indivíduos no momento em que o Estado submergiu na voragem da guerra religiosa, soçobrou na crise da sociedade governada pelo desejo e pelo medo. Para Hobbes, é permanente a possibilidade de o Estado, o Deus Mortal, ser destruído em uma crise desencadeada pelas rivalidades espicaçadas pela truculência individualista.

Por isso a suprema obrigação moral do Estado é a de dar proteção ao cidadão. Hobbes considerava as forças armadas e a polícia órgãos imprescindíveis do Estado moderno, a encarnação de sua essência. Mas, a segurança do cidadão estaria garantida apenas mediante a imposição de controles e limites aos funcionários da segurança pública, determinados pela lei. Essas funções devem ser exercidas com rigor para conter impulsos destrutivos dos indivíduos, mas submetida às restrições necessárias para impedir que a soberania do Estado se transforme em arbítrio, ou seja, no exercício de um poder privado pela burocracia estatal encarregada da segurança pública. Não por acaso, a proposta de liberação das armas vem acompanhada do desejo de aparelhamento da Polícia Federal.

Nas repúblicas modernas, se é que temos aqui algo parecido com isso, figuram entre as cláusulas pétreas aquelas relativas à representação legitimada pelo voto, à impessoalidade na administração pública, à constituição de um sistema de poderes e garantias fundados na lei. O sistema de poderes e garantias ancorado na lei é o núcleo central do Estado contemporâneo. É isso que o obriga a punir, no exercício do monopólio da violência, as tentativas de opressão arbitrária de um indivíduo sobre o outro.

O descumprimento do dever de punir pelo ente público termina por solapar a solidariedade que cimenta a vida civilizada, lançando a sociedade no desamparo e na violência sem quartel. Os códigos da cidadania moderna foram concebidos como uma reação da maioria mais fraca contra o individualismo anarquista dos que se consideram com mais direitos e poderes.

As manifestações contra o STF são a prova cabal de sua aversão à igualdade fundamental entre os cidadãos. O tom dessas manifestações permite suspeitar que os bolsonaristas sentem-se ungidos, superiores aos demais cidadãos.

As conquistas da modernidade das quais não se pode abrir mão vêm sendo pisoteadas por quem imagina defendê-las com tropelias dos homens das cavernas. Sequer cuidam de ocultar da sociedade, em cujo nome dizem agir, o empenho com que laboram para tecer a corda em que enforcarão os direitos e garantias individuais. Nas investidas do bolsonarismo, o Estado se transforma num aparato administrativo desgovernado e despótico, numa caricatura de si mesmo, num butim a ser dilapidado por ocupantes eventuais.

A permissão para a posse indiscriminada de armas é o primeiro passo para a reinstauração da guerra privada e, provavelmente, para o aparecimento de alguma forma de despotismo extralegal. Incapacitado de garantir aos “indivíduos pacificados” proteção diante da turbulência bárbaros, o Estado brasileiro se amesquinha e não consegue cumprir o dever elementar de exercer o monopólio da violência.

Presa fácil das forças subterrâneas que movem este processo, de consequências funestas, a sociedade se debate, sem rumo. A impossibilidade de encontrar os meios adequados para conter a violência, o medo da destruição e da morte engendram a fuga para as campanhas de opinião que apelam para medidas extremas. São manifestações de impotência, travestidas de ações da sociedade civil, em cujos becos e desvãos escuros, aliás, se acumula a energia que alimenta a onda de violência que atinge a todos. Enquanto isso, deitam e rolam os que se beneficiam da desagregação do aparelho de Estado desde o seu interior.

No bate-bumbo da controvérsia sobre a interferência na Polícia Federal para frear as investigações sobre o ex-ministro Milton Ribeiro e os pastores negocistas, Jair Bolsonaro e seus apoiadores definiram claramente sua concepção das instituições e das prerrogativas dos ocupantes de funções públicas. “Eu administro a República com a minha família, como se fosse minha casa.” Essa é a síntese do pensamento bolsonarista, de seus acólitos e servidores.

Paulo Guedes e sua trupe se empenham na privatização da Eletrobras, Petrobras e Bancos Públicos. Bolsonaro& Família foram mais expeditos: já realizaram a privatização do Estado. (Valor Econômico – 05/07/2022)

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp

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