Embora menos visível que outras, a Lei Rouanet está entre aquelas com maior impacto na vida nacional. Deu vida a milhares de eventos culturais. Livros, esculturas, exposições, filmes, bienais, orquestras, peças, festivais, museus, desfiles, concertos só ocorreram ou existem graças ao patrocínio promovido por recursos privados com incentivo público. Além do fundamental aporte financeiro, a Lei Rouanet quebrou o vício do apadrinhamento político e induziu artistas e empresários a dialogarem, inseminando nos primeiros a necessidade de mostrar o trabalho a que se propunham, e aos outros incentivando a se abrirem ao mundo da cultura, olhando obviamente para benefícios fiscais que obteriam com seus investimentos.
A Lei Rouanet mudou a vida cultural brasileira, mas ofuscou ao filósofo e sua obra literária. As letras não gostam de dividir seus escritores com a atividade política deles. Todos lembram que Winston Churchill venceu o nazismo, poucos que ele foi Prêmio Nobel de Literatura. Charles de Gaulle é reconhecido como líder da França Livre, raramente lembrado como um dos grandes escritores em língua francesa. A política ofusca as letras.
A marca intelectual de Rouanet é muito maior do que a importância da lei que leva seu nome. Por maior que tenha sido sua obra como ministro, sua criação como filósofo e crítico é mais permanente. Governos podem tirar o nome Rouanet da lei que ele criou, mas nada vai tirar nem apagar seu nome das ideias marcantes que produziu.
Um livro como As razões do iluminismo, de 1988, deixa a marca de Rouanet no entendimento da crise no pensamento mundial. Ele analisou dúvidas que se insinuavam como críticas progressistas sobre a racionalidade, a modernidade e o conhecimento, mas eram retrógradas nas orientações para o futuro. Rouanet entendeu os erros e maldades da modernidade, da razão e da ilustração intelectual, denunciou desastres criados pelo iluminismo, mas não aceitou jogar fora as grandes conquistas da humanidade que vêm do Renascimento. Não adotou o futuro como continuidade da tendência histórica, nem criticou o presente preferindo o passado. No lugar de recusar a modernidade, optou pelo uso da razão para modernizar o iluminismo. Propôs reorientar o rumo do pensamento e da realidade, sem ficar agarrado nostalgicamente a boias de salvação de ideias obsoletas.
Superou o triângulo das bermudas do pensamento, onde: um dos pontos deseja continuar no impulso do progresso, sem considerar as depredações da justiça, da ecologia e dos patrimônios culturais; noutro ponto estão aqueles que, em nome da harmonia, se recusam ao crescimento e até a outras formas de evolução; e no terceiro ponto, os que insistem no socialismo dos séculos 19 e 20 como rumo para o século 21.
Esse Livro Rouanet precisa ser lido hoje para fugirmos do confronto estéril entre aqueles que simplesmente rechaçam o progresso; aqueles que insistem na marcha da modernidade-técnica, apesar de seus custos sociais e ecológicos; e aqueles que sonham nostalgicamente com um modelo antigo de modernidade. Uns não veem os desastres, outros desejam parar a história, outros sonham com um tipo de modernidade que já morreu. Rouanet trouxe o sonho de uma modernidade-ética capaz de fazer avançar a razão, para que ela, não os misticismos ou os saudosismos, orientem a humanidade na direção de um mundo melhor e mais belo, não apenas mais rico. Rouanet criticou para avançar. Seu pensamento serve de base àqueles que propõem um desenvolvimento ecologicamente sustentável, com propósitos éticos, com racionalidade econômica e respeito à Terra e sua vida. Esta é apenas uma de muitas contribuições que fazem a Lição Rouanet ser ainda maior que a Lei Rouanet.
Sua obra como crítico nos deixou, entre outros, o formidável livro Os dez amigos de Freud. A origem do livro demonstra sua inquietação intelectual. Ao tomar conhecimento de uma lista de autores selecionados por Freud, como escritores que ele admirava, mergulhou em suas obras, estudou suas vidas, sugeriu por que Freud os admirava, se muitos deles foram esquecidos nos anos seguintes. A coleção de críticas é um texto que deslumbra, a ponto de o leitor lamentar ter concluído a leitura. Um desses raros livros que instigam pela quantidade de informações sobre aqueles “amigos de Freud”, os ambientes em que viveram, as obras que eles criaram. Obrigado, Rouanet, pela lei e ainda mais pela lição. (Correio Braziliense – 12/07/2022)
Cristovam Buarque, professor emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação