Maria Cristina Fernandes: Pobres contra Bolsonaro

Os mais pobres declararam oposição ao governante de plantão. Nunca o haviam feito de maneira tão acachapante a esta altura da campanha. Bolsonaro conseguiu ganhar em 2018 sem o voto majoritário deles. Feito inédito. O problema é que, ao aumentar a pobreza do país que governou, o próprio presidente colocou tijolos a mais no muro que agora parece intransponível. Com ódio, fome e pressa, o Brasil emparedou o bolsonarismo. Cedo demais?

Aos números – do Datafolha, que permite a comparação desde 2002, e com a intenção de votos espontânea, a menos poluída de todas. É quando o eleitor, sem pegadinhas e listas por ordem alfabética ou escalafobética, responde de bate pronto em quem vai votar. Nesta última rodada, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem 38% e o presidente Jair Bolsonaro, 22%. Nunca houve, nos últimos 20 anos, uma rodada do instituto que tenha detectado uma intenção de voto espontânea tão polarizada – e tão alta para o líder – a esta altura do campeonato.

O eixo que divide os dois polos é renda. E isso não poderia estar mais claro. Entre aqueles que ganham até dois salários mínimos, Lula vai a 43% e Bolsonaro cai para 15%. Está melhor que em 2018, quando tinha metade disso entre os mais pobres no início de junho. O problema, para Bolsonaro, é que o PT está muito melhor.

Lula elegeu-se em 2002 com uma vantagem maior entre os mais aquinhoados e de maior instrução. Mudou este perfil eleitoral em 2006, quando pôs o Bolsa Família na vitrine. De lá pra cá, os mais pobres nunca mais deixaram de ser o abre-alas do PT. Mas nunca haviam tomado a avenida como agora. Bolsonaro reverterá? Difícil. Tentou o Auxílio Brasil, mas a outra rodada do Datafolha já havia mostrado que sua avaliação é até pior entre os beneficiários.

E se o governo resolvesse despejar gasolina de helicóptero? Paulo Guimarães, professor de estatística aposentado da Unicamp, está na estrada desde 1989, quando fez a campanha de Leonel Brizola. Este ano, já fez rodadas qualitativas para quase todos os candidatos, é o analista de pesquisas da campanha à reeleição de Rodrigo Garcia (PSDB-SP) e tem sido consultado por Sidônio Pereira, marqueteiro de Lula e seu parceiro no atendimento ao governo da Bahia.

“Já passou do ponto de retorno”. Primeiro porque o governo não tem como dar um subsídio que faça diferença. A carência é tamanha que as pessoas que tiveram acesso ao vale-gás continuam a cozinhar com lenha e usaram dinheiro para comprar comida. E depois porque estão com ódio mesmo. Nos grupos que conduz, Guimarães só ouve xingamento. Quanto mais pobres e mais precarizados, mais xingam. Na foto do Datafolha isso aparece no cruzamento que contrasta a intenção de voto espontânea para Bolsonaro entre os assalariados sem registro (18%) com aquela colhida entre empresários (49%).

Por mais que temas como a morte, sob tortura da Polícia Rodoviária Federal, de Genivaldo Santos, tenham mobilizado a opinião pública, Guimarães não vê impacto da violência policial sobre o voto. Quanto mais endêmico o problema, menor capacidade tem de pautar o eleitor. A violência seria um desses. As polícias nunca pegaram leve no Brasil. Ninguém vai acreditar se alguém prometer que vai controlá-las. O que faz a cabeça do eleitor é ser desprovido de algo de que tinha ou vice-versa. Quando o adversário é aquele que já ofereceu algo que hoje lhe falta, aí o incumbente está perdido. Por isso, o foco de Lula é na renda.

É da renda – e dos eleitores de Ciro Gomes – que Guimarães vê a chance de a fatura ser liquidada no primeiro turno. Diz que, da mesma forma que em 2018, quando Bolsonaro fez escada nos costumes para tentar evitar a segunda rodada, Lula tem de encontrar a urgência da vez. As pesquisas sugerem que a encontrará na desesperança do eleitor face à melhoria de vida sob o bolsonarismo.

Professor da Universidade Federal de Minas Gerais e diretor do Quaest, Felipe Nunes vê menos chances de a disputa ser encerrada no primeiro turno. Não apenas pelo histórico das disputas presidenciais – apenas duas (FHC I e FHC II), de oito, se encerraram no primeiro turno – como pela resiliência daquele quarto do eleitorado que, nos seus levantamentos, ainda resistem a Lula ou Bolsonaro.

À raiva pelo empobrecimento soma o medo da violência que, desta vez, trocou de sinal. Em 2018 uma das alavancas de Bolsonaro foi o impacto da criminalidade sobre pobres e ricos, indistintamente. Desta vez, Nunes vê indícios de que o medo permanece, mas é da polícia e vem dos mais pobres. Por isso, a truculência da PRF ressoou.

Nunes reitera a radicalidade da polarização dos eleitores que já se definiram mas não a circunscreve ao viés de renda. De fato, nos cruzamentos do Datafolha, a eleição está polarizada de A a Z. Basta ver a vantagem de Lula sobre Bolsonaro na intenção de voto espontânea entre eleitores com ensino fundamental (43% x 17%), mulheres (39% x 18%), do Nordeste (49% x 15%) e pretos (44% x 17%).

Essa polarização não parecia estar nos planos do PT que tenta afastar Lula de carimbos como “pai dos pobres” com a transversalidade de temas como a defesa da democracia. A julgar pelo que se vê no Datafolha, porém, a paternidade arrisca se estender às mulheres, aos eleitores de baixa escolaridade, aos pretos e nordestinos.

Nunes teme a extensão, no Brasil, para o fenômeno da “polarização afetiva” que, nos Estados Unidos, transformou democratas e republicanos, pró-vacina e antivacina, abortistas e não abortistas, pró-armas e antiarmas, de adversários em inimigos. Vê nesta divisão a semente para comportamentos autoritários.

A polarização mostrada pelo Datafolha, porém, sugere uma brecha para que o fenômeno não se repita aqui. A intenção de voto de Lula sobre Bolsonaro alarga-se, de fato, em determinados segmentos, mas o candidato petista não vai mal nos demais. Ganha também entre homens brancos. Apertado, mas ganha. Chega perto do presidente no Centro-Oeste, região mais chapa-branca, e está melhor entre os evangélicos do que o PT esteve em 2018.

O fosso maior, mesmo, é na renda. Em nenhum recorte, a diferença na intenção do voto lulista é tão grande quanto entre pobres e ricos. Visto que os primeiros são a maioria do eleitorado, a polarização favorece Lula. O que se eleva é o preço de um estelionato eleitoral em 2023. Mas esta é outra história. O que resta saber é o que Bolsonaro e seus sócios farão com indícios tão claros de um comportamento desfavorável do eleitor a quatro meses da eleição. (Valor Econômico – 02/06/2022)

Maria Cristina Fernandes é jornalista do Valor

Leia também

Desoneração da folha é leite derramado

NAS ENTRELINHASO Congresso pretende reduzir os impostos e exigir...

O padrão a ser buscado

É preciso ampliar e replicar o sucesso das escolas...

Parados no tempo

Não avançaremos se a lógica política continuar a ser...

Vamos valorizar a sociedade civil

Os recentes cortes promovidos pelo Governo Federal, atingindo em...

Petrobrás na contramão do futuro do planeta

Na contramão do compromisso firmado pelo Brasil na COP...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!