José Serra: A democracia representativa não será demolida

Desde 2013, vem se acumulando a frustração entre os brasileiros com a resposta das elites dirigentes a suas demandas vitais – trabalho, meios de subsistência, moradia, saúde, transporte e, mais do que tudo, o direito a ser tratado com dignidade pelas autoridades públicas. As mesmas queixas têm-se repetido ao longo dos anos seguintes, sublinhando a relativa cegueira das elites a respeito da insatisfação popular.

Em todo o mundo, a incúria do poder público redundou numa enraizada desconfiança dos cidadãos com relação a seus representantes. A falta de confiança gerou perdas de legitimidade do sistema representativo, no pressuposto de que a democracia dá, aos representantes eleitos por voto popular, o direito de legislar em seu nome.

Em diferentes camadas da sociedade, sobretudo naquelas mais vulneráveis à instabilidade econômica e aos eventos adversos – como as catástrofes naturais, as guerras e as pandemias –, os cidadãos passaram a duvidar da legitimidade do mandato popular por eles concedido. As elites dirigentes vêm sendo acusadas de não respeitar os interesses e valores dos seus eleitores, não cumprir as leis que eles mesmos votam, fraudar a legalidade em benefício próprio e não retribuir aos cidadãos o mínimo do que lhes é devido.

Os eleitores se dão conta da barreira que se ergue entre eles e seus representantes, que depende, nas democracias representativas, do regime de governo e da legislação eleitoral. Legislações eleitorais majoritárias (distritais) tendem a diminuir a quantidade de partidos relevantes e a formar maiorias legislativas mais compatíveis com o eleitorado do chefe do Executivo, o que propicia maior estabilidade e capacidade de implementar políticas públicas.

Legislações eleitorais proporcionais, por seu lado, tendem a aumentar a quantidade de partidos, favorecendo a representação no Legislativo de pequenas minorias e dificultando, assim, a formação de maiorias estáveis, compatíveis com o eleitorado do chefe do Executivo. Neste caso, o Executivo precisa formar maiorias ocasionais para implementar suas políticas públicas, sendo forçado a negociar alterações oportunistas e a engolir legislações incompatíveis com a agenda por ele proposta a seus eleitores. O efeito final são governos instáveis, regularmente surpreendidos por pautas-bomba e incapazes de manter uma gestão coerente e de revogar privilégios e agendas retrógradas.

É fácil culpar o eleitor por todas as mazelas do sistema político, evocando o corriqueiro argumento de que “cada povo tem o governo que merece”. Mas é injusto e incorreto esquecer que o cidadão vota de mãos atadas porque não sabe a quem seu voto irá beneficiar, uma vez que seu percurso até a diplomação de um eleito se faz segundo as regras eleitorais, e não segundo sua decisão.

Por uma razão simples: dadas as regras da legislação eleitoral, apenas entre 15% e 20% dos candidatos eleitos contaram exclusivamente com votos recebidos nominalmente, e os restantes 85% a 80% foram destinados a outros candidatos de seu partido (até a eleição de 2020, teriam sido destinados a candidatos de qualquer partido de sua coligação). O eleitor não sabe quem elegeu e se o eleito sabe quem são os seus eleitores.

A capacidade governativa do chefe do Executivo é limitada pelas concessões a serem feitas a maiorias ocasionais e diante de emendas oportunistas, geralmente incompatíveis com sua agenda. Com isso, frustra as expectativas do eleitorado. Ademais, cria-se um solo fértil para o surgimento de lideranças demagógicas e aventureiras que, quanto mais radicalizam, mais se tornam capazes de manipular a insatisfação popular.

Duas são as consequências mais relevantes dessa combinação entre o regime presidencialista e o sistema proporcional de lista aberta, que a tornam incompatível com o caráter representativo de nossa democracia. Em primeiro lugar, se não sabemos quem nos representa, como podemos aceitar que o mandato de nossos representantes seja legítimo? E, se nossos representantes não sabem a quem representam, como aceitar que seu mandato seja democrático?

Em segundo lugar, se a polarização se torna a regra, e não a exceção, a essência da democracia, que é o direito de escolher livremente quem melhor representa minhas ideias e meus interesses, é gravemente travestida numa escolha entre candidatos a quem menos rejeitamos.

Embora a polarização seja resultado de um conluio entre candidaturas que se empenham em negar a liberdade de escolha do eleitor, ela não seria possível se o sistema eleitoral não a tornasse viável. Portanto, ela se repetirá a cada quatro anos se uma revisão do regime presidencial e do voto proporcional não obtiver o apoio popular e o empenho do Legislativo.

Projetos de lei e de emenda constitucional sobre o tema estão em andamento no Congresso, alguns de minha autoria, em ambas as Casas. A pressão da sociedade civil em prol dessa reforma poderia se manifestar recusando-se a contribuir para as candidaturas polarizadas. (O Estado de S. Paulo – 23/06/2022)

Leia também

Brasil safado de Madonna é negação do conservadorismo

NAS ENTRELINHASFãs revelam uma identidade coletiva na qual representam...

O padrão a ser buscado

É preciso ampliar e replicar o sucesso das escolas...

Parados no tempo

Não avançaremos se a lógica política continuar a ser...

Vamos valorizar a sociedade civil

Os recentes cortes promovidos pelo Governo Federal, atingindo em...

Petrobrás na contramão do futuro do planeta

Na contramão do compromisso firmado pelo Brasil na COP...

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!