Num dos meus últimos artigos, busquei chamar a atenção para os desafios e oportunidades em torno da Amazônia. Nosso mais simbólico bioma, relevante por tantos motivos, passou a estar associado nos últimos anos ao retrocesso brasileiro. Num momento em que governos e sociedades se mobilizam em várias instâncias – como nas Conferências das Partes ou COPs, no âmbito das Nações Unidas – para conter o agravamento do aquecimento global, o Brasil frequenta a imprensa internacional por caminhar na direção contrária: o desmatamento amazônico.
Para que o leitor tenha dimensão do que falo: de agosto de 2020 a julho de 2021, segundo os dados oficiais do Inpe/Prodes, 1,32 milhão de hectares de florestas foi derrubado na região amazônica. O equivalente a mais de 5% de todo o território do Estado de São Paulo. Ou seja, mantidos os números, em menos de 20 anos teremos desmatada na Amazônia uma área equivalente a todo o nosso Estado.
Inclusive, o desmatamento amazônico é a maior fonte de emissão de gases de efeito estufa (GEEs) no Brasil. A floresta retira carbono da atmosfera e tem função crítica na regulação do regime de chuvas não apenas da região, afora sua biodiversidade.
Conhecer a dinâmica do desmatamento no bioma é essencial para o desenho de políticas ambientais efetivas. Um diagnóstico incorreto apenas por sorte conduzirá a um tratamento eficaz.
Conforme estudos do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a dinâmica do desmatamento vem passando por mudanças. Se antes a derrubada de vegetação em propriedades e posses rurais era o principal componente de desflorestamento, em anos recentes o principal vetor de desmatamento é a grilagem em terras públicas, em especial no que se denomina de florestas públicas não destinadas (FPNDs). As FPNDs ocupam superfície de 60,7 milhões de hectares do bioma amazônico (14% da área total), o equivalente a quase duas vezes e meia o território do Estado de São Paulo.
A falta de destinação das FPNDs pelos entes responsáveis (Estados e, em especial, União) tem aberto caminho para um processo crônico e crescente de grilagem de terras públicas, seguido por desmatamento. São ilícitos sobrepostos: a apropriação de patrimônio público combina-se com a devastação ambiental. De acordo com dados do Inpe, em 2020 as FPNDs responderam por 32% do desmatamento no bioma; no primeiro trimestre de 2021, por 33%.
Paradoxalmente, o desmatamento de FPNDs tem se apoiado no uso fraudulento de um instrumento criado pelo Código Florestal de 2012: o Cadastro Ambiental Rural (CAR). O CAR é um instrumento cuja finalidade exclusiva é integrar as informações ambientais de imóveis rurais, servindo de base de dados para controle, monitoramento, planejamento econômico-ambiental e combate ao desmatamento. No entanto, o CAR tem sido empregado por grileiros para comprovação de posse ou propriedade de terras públicas, embora não tenha natureza fundiária ou validade legal para isso.
Segundo o Ipam, o registro ilegal no CAR precede a invasão de terras públicas e seu desmatamento, compondo um ciclo: o CAR, ao dar aparência de regularidade à posse ilegal de terras públicas, facilita a obtenção dos recursos financeiros que serão usados no desmatamento, verdadeiro investimento predatório; derrubada a floresta, por vezes em associação com a pecuária extensiva, os grileiros aguardam a próxima rodada de regularização da ocupação ilícita; ao fim, legalizada a invasão, a área torna-se um ativo no mercado fundiário, com o que se estimulam novas rodadas de invasões e desmatamento.
Os números são alarmantes! Até 2020, 18,6 milhões de hectares de FPNDs foram declarados ilegalmente como imóveis particulares no Sistema de Cadastro Ambiental Rural (Sicar), ou 30,6% da área total de FPNDs na Amazônia Legal, um aumento de 232% em relação a 2016. Adicionalmente, o Ipam informa que 44% dos cadastros sobrepostos a FPNDs abrangem grandes áreas, o que indica a prática da atividade ilegal por agentes com poder econômico. No período de 2016 a 2020, tanto o desmatamento quanto os focos de incêndio em FPNDs foram mais frequentes nas áreas com registro no CAR.
O problema, pois, requer intervenção da parte de diferentes atores. Antes de tudo, o desmonte do aparato de fiscalização ambiental e fundiária, em especial no âmbito da União (Ibama, Incra, Inpe, ICMBio etc.), precisa ser revertido. Os projetos de regularização fundiária geral e irrestrita, tão recorrentes nos Legislativos, estimulam a indústria da invasão e do desmatamento, verdadeiros prêmios à grilagem. As FPNDs deveriam ser transformadas em unidades de conservação, terras indígenas ou áreas de uso sustentável dos seus recursos, por meio de concessão florestal ou uso pelas populações tradicionais, vedada sua conversão para usos alternativos e predatórios. O uso fraudulento do CAR deve ser criminalizado, e todos os registros sobrepostos a terras públicas devem ser cancelados.
O Brasil demonstrou, num passado nem tão distante, que sabe fazer política ambiental. Podemos e devemos retomar essa história. (O Estado de S. Paulo – 10/03/2022)
JOSÉ SERRA, SENADOR (PSDB-SP)