Alberto Aggio – Brasil e Chile: Uma história comparada de golpes, autoritarismo e democracia

Antes de iniciar gostaria de esclarecer os enfoques que norteiam essa exposição. O primeiro é a análise comparativa, entendida como um artifício que em nenhum sentido deve ser visto como arbitrário, tanto mais em se tratando da América Latina, esse construto simbólico sempre ressignificado conforme variáveis ideológicas, acadêmicas ou políticas.

O que se busca é iluminar um objeto de estudo frente a outro, estabelecer analogias, semelhanças e diferenças entre duas realidades históricas. Pela comparação é possível observar realidades dinâmicas e verificar como elas variam. O artificio da comparação contribui para uma melhor interpretação das sociedades latino-americanas, de suas contradições, seus paradoxos, seus impasses e seus limites.

O segundo enfoque é o potencial interpretativo da história política. É preciso reconhecer que a história política acabou se fixando, nos últimos tempos, como parte da história cultural, que passa a ser vista como o território totalizante da produção historiográfica. Estuda-se mais as relações e práticas de poder, entendidas como “fenômenos”, do que as complexas dinâmicas e vicissitudes da política, que dão expressão aos atores em suas contradições, orientando ou reorientando os processos históricos.

Exemplificando, o conceito de cultura política foi, muitas vezes, tomado como manifestação cultural e menos como expressão da dinâmica política no campo das ideias e do pensamento. Neste caso, a cultura política ao invés de ser uma dimensão articuladora do político, como sugere Pierre Rosanvallon (2010), passou a ser abordada pela descrição dos seus componentes, dispensando-se a necessária interpretação dos processos e mecanismos de reorganização dos embates da disputa política. Nesse caso, faz-se uma história política abdicando dos problemas históricos que ela engendra; em síntese, “uma historiografia sem problema histórico” (VACCA, 2009, 120).

Mobilizamos aqui a análise comparativa para que ela possa nos ajudar a construir uma interpretação dos acontecimentos e processos políticos vivenciados tanto no Brasil quanto no Chile desde as décadas de 1960 e 1970, e que tiveram a questão democrática como seu “problema histórico” essencial. Assumimos uma perspectiva metodológica que entende a “comparação como vital”, como indicava Gramsci (1999, 426), “contanto que não seja feita com base em esquemas sociológicos abstratos”. Busca-se examinar o problema histórico da democracia na América Latina no interior de uma análise diferenciada, como sugere Giuseppe Vacca (2009, 120), capaz de “explicar diferenças que caracterizam experiências históricas diversas em relação a um quadro comum de problemas”, levando em consideração “suas diferenciações internas e conexões”.

Brasil e Chile: alguns pontos de comparação

O Brasil vivenciou o golpe de Estado de 1964 nove anos antes do Chile (1973) e os regimes autoritários nos dois países foram simultâneos apenas em parte: no Brasil de 1964 a 1988 e, no Chile, 1973 a 1990. Há consenso a respeito da presença norte-americana nos dois golpes de Estado bem como o reconhecimento de que essa presença não se configurou como determinante diante dos conflitos internos. Há também reconhecimento quanto ao fato de que ambos os golpes poderiam ter sido evitados, caso os atores políticos tivessem outro comportamento.

Embora tenha durado um pouco mais, o regime autoritário brasileiro não carrega simbolicamente a marca de repressão e violência continuada que o regime autoritário impôs à sociedade chilena. No Chile, a memória da repressão tem uma forte dimensão pública e, por isso, a presença do passado autoritário no imaginário social é mais vigorosa do que no Brasil.

O ponto em comum é que ambos regimes autoritários promoveram transformações estruturais profundas. Comum foram também os processos de transição, catalogados como “transições pactadas”, resultando, no caso chileno, uma grande influência do regime anterior. A sombra do autoritarismo no Chile foi mais densa do que no Brasil. Mesmo assim, em ambos os países é inquestionável a mudança promovida pelos processos de transição, o que não significa deixar de colocar em discussão a qualidade da democracia existente tanto no Brasil quanto no Chile.

O golpe militar de 1964 e o regime autoritário brasileiro

O presidente João Goulart foi deposto por uma coalizão de forças militares e civis que dizia querer restaurar a democracia no país. Mas isso não ocorreu e o regime se impôs por 20 anos. Dentre as justificativas do golpe, o principal argumento era que Goulart abria passagem para os comunistas “tomarem o poder”. O problema se concentrou nas “reformas de base”, especialmente na reforma agrária, ponto de discórdia das elites política.

A conjuntura política antes do golpe revelou a grande dificuldade de compatibilizar reformas econômico-sociais com a democracia política. Com o descontrole econômico, agravaram-se as tensões sociais, o radicalismo e a polarização. Neste cenário, tanto a direita quanto a esquerda passaram a defender uma solução de exceção: o recurso às armas colocava-se como saída para ambos os lados.

Para a direita, a democracia interessava se fosse útil na defesa de seus privilégios, e inútil se estes estivessem ameaçados; para a esquerda, além de pressionar para que o governo acelerasse a implementação das reformas, os qualificativos substantivos que elas carregavam eram mais importantes do que as formalidades democráticas. Como observou Argelina C. Figueiredo, no Brasil daqueles anos, “tornou-se impossível a construção de um compromisso que combinasse reformas e democracia em um projeto político consistente, porque democracia e reformas eram percebidas como objetivos políticos conflitantes” (1993, 48).

O golpe de 1964 não pode ser visto como uma fatalidade, atribuída apenas aos aspectos estruturais da economia, como o esgotamento da estratégia de substituição de exportações, nem como uma ação exclusiva da coalizão de direita, eximindo-se os setores nacionalistas e de esquerda de quaisquer responsabilidades por seus posicionamentos cada vez mais rupturais.

No fundo, direita e esquerda compartilhavam uma baixa convicção a respeito da democracia existente no país. Ambos os lados conspiravam contra a democracia representativa e preparavam um golpe contra suas instituições: a direita para impedir o avanço e a consolidação das reformas; a esquerda para eliminar os obstáculos que se antepunham a esse processo e ao que ela imaginava que poderia vir em seguida, em favor de seus projetos revolucionários. Conforme José Murilo da Carvalho, “o golpismo, concepção e prática já arraigada na direita, iria se combinar dramaticamente com a ausência de tradição democrática da esquerda, levando a uma confrontação que seria fatal para a democracia” (2001, 150).

Os primeiros anos do “regime de 1964” deram a entender que iria se afirmar no país o ideário do liberalismo econômico. Contudo, depois de dois anos, os militares mudaram a orientação, retornando ao ideário do nacional-desenvolvimentismo que havia dado suporte à modernização das décadas anteriores. Conforme anotou Luiz Werneck Vianna (1994a), a partir desta redefinição, o regime autoritário de 1964 deslocaria para a dimensão do mundo privado o tema do “liberalismo puro”, ao mesmo tempo em que intensificaria a intervenção do Estado na economia objetivando acelerar o desenvolvimento como forma de superação do atraso econômico.

A partir do “regime de 1964”, a novidade viria dos processos societários que a mudança econômica haveria de ensejar. Em termos sintéticos: a dimensão pública, que no Estado Novo de Vargas incorporava a dimensão privada no interior da ordem corporativa, passa a ser instrumentalizada. Rompe-se com a situação anterior, redefinindo-se a dimensão pública como monopólio do Estado e liberando a dimensão privada para que esta pudesse se adensar e se afirmar como a base de uma nova sociabilidade fundada em empreendedores particulares.

Se, de um lado, liberou-se a racionalidade instrumental dos interesses econômicos, o que correspondia à lógica da aceleração da acumulação capitalista, de outro, se promoveu

uma verdadeira hecatombe política, ético-moral e no tecido social, aprofundando a tradicional atitude na população de indiferença à política, dificultando, pela perversão individualista, a passagem do indivíduo ao cidadão, e agravando em escala inédita a exclusão social, ao mobilizar setores subalternos do campo para os polos urbano-industriais, onde chegavam destituídos de direitos e de proteção das políticas públicas (VIANNA, 1994a).

A magnitude das transformações que se operaram foi sem precedentes na história do Brasil, a ponto de um investigador brasileiro qualificar o que se processou como uma verdadeira “revolução” (Santos, 1985), a despeito da retórica dos militares.

Para Werneck Vianna (1994b), o regime militar conseguiu realizar esta estratégia pela via do pragmatismo, mantendo intacto o bloco agrário-industrial, induzindo a conversão dos latifúndios em empresas capitalistas e consagrando “o processo de criação de uma sociedade industrial de massas à americana”, sem realizar alterações significativas na forma do Estado. Mas, a mudança fundamental resultou da liberação dos instintos egoísticos da sociedade civil. Através dela, atualizou-se o “processo transformista da democratização, universalizando os direitos sociais e erodindo as bases tradicionais de controle, principalmente no campo, mas sem estimular a emergência do cidadão e sem compromisso com as práticas e ideais da democracia política” (Vianna, 1994b).

O regime autoritário aparece, portanto, em linha de continuidade com a modalidade de modernização conservadora anterior, acelerando este processo. Foi uma “fuga para frente” em termos de transformações econômicas e sociais que garantiu o sucesso do regime bem como sua legitimidade e longevidade.

Chile: o golpe militar de 1973 e o regime autoritário

O presidente Salvador Allende foi deposto em setembro de 1973 e, no discurso dos golpistas, era claro o propósito de “salvar o Chile do comunismo” e instituir uma nova ordem política e social. O governo que foi derrubado era declaradamente socialista e realizava reformas nesse sentido, mantendo a legalidade democrática, como estava previsto no projeto da “via chilena ao socialismo”. Contudo, por essas reformas serem implementadas via decretos do Executivo e não por meio de acordos no Parlamento, as contradições foram se acirrando e a polarização acabou por se sobrepor a qualquer outra racionalidade política, culminando tanto na desestabilização quanto na desinstitucionalização que levaram ao golpe (AGGIO, 2002).

O notável é que o discurso dos golpistas assumiu o mesmo tom do discurso revolucionário que fazia a Unidade Popular (UP), instituindo, entretanto, um vetor contrário. Não se objetivava o retorno à democracia, mas a imposição de uma ditadura que reconstruísse o país. Como observou Tomás Moulian, “o regime militar é a negação da Unidade Popular e também uma realização invertida da sua ideia matriz. Apropria-se de elementos que se haviam instalado no imaginário social pela ação cultural dela própria: a ideia de uma crise, da necessidade de uma ‘grande transformação’ e a valorização de uma ditadura enquanto instrumento do bem” (1993, 288).

O golpe de 1973 foi um ato cirúrgico de cancelamento da política, o que significava dizer que foi a supressão da forma pela qual a sociedade chilena compreendia-se a si mesma. A ditadura procurou encarnar o inverso dos anseios revolucionários da UP e, paradoxalmente, como afirma Tomás Moulian (1993) foi a partir de sua negação que os chilenos vieram a conhecer, de fato, o significado da palavra revolução. Tratava-se de uma contrarrevolução por meios revolucionários: havia metas de transformação radical a serem alcançadas, e não prazos para impor um capitalismo quase sem regulações, apoiado num Estado autoritário sustentado por mecanismos institucionais conservadores.

De acordo com Carlos Huneeus (2000), com a personalização do poder em Augusto Pinochet, estabeleceu-se um regime autoritário com baixo nível de institucionalização, com o sistema decisório e de produção de leis, bem como as instâncias formais de deliberação, resolução e implementação das políticas de Estado e de governo fortemente submetidas à centralização.

Visando recriar a sociedade, o regime autoritário estruturou sua perspectiva fundacional e se propuseram a dar início a uma nova fase na história do país, para o qual estabeleceram metas muito ambiciosas: eliminar a pobreza, criar as bases do crescimento econômico e implantar uma ordem política distinta da democracia ocidental porque a consideravam frágil diante do marxismo. Esta [nova ordem] seria uma democracia protegida e autoritária, com pluralismo limitado e submetida à tutela das Forças Armadas, que a deixariam funcionando quando voltassem para os seus quartéis (HUNEEUS, 2000, 624).

Essas foram as bases políticas para a imposição de reformas neoliberais, dentre elas, a privatização de empresas públicas, dos serviços de saúde e previdência social, além de medidas relativas à abertura comercial, ao estímulo às exportações e à supressão do controle de preços, etc.

O regime de Pinochet transformou-se então no show case dos neoliberais de todo o mundo, antes da Inglaterra de Margareth Thatcher e dos EUA de Ronald Reagan. Para os ideólogos do regime, tratou-se de uma “revolução silenciosa”, cujo resultado mudaria os valores da sociedade, tornando-a mais individualista, consumista e despolitizada, anulando traços distintivos da cultura política anterior, mais solidária e democrática.

Foi somente quando sentiu que o empreendimento político do regime estava consolidado que Pinochet abriu a possibilidade de que um plebiscito sancionasse a nova Constituição do país, em 1980. É a partir desse momento que a ditadura se institucionaliza, sustentada numa mudança histórica sem precedentes.

A transição democrática: interpretações

A superação dos regimes autoritários do Brasil e Chile se deu por meio de transições democráticas. Não era fácil compreender que aquelas ditaduras não seriam derrubadas pela via das armas ou de insurreições populares, mas sim por meio de processos políticos transacionados que adquiririam força, extensão e profundidade conforme a participação popular na sua dinâmica. A democracia que viria estaria, assim, condicionada ao problema e ao percurso político da transição.

A expectativa era de que a transição assumisse uma estratégia de reformas que rompesse com a modernização conservadora, no caso brasileiro, e com o neoliberalismo, no caso chileno. Em ambos os países se havia liberado o mundo dos interesses de cima à baixo do tecido social e isso precisaria ser bem entendido e enfrentado.

No Brasil, desde 1974, a oposição transformou cada eleição parlamentar em um “plebiscito” contra o regime autoritário. Essa estratégia vitoriosa levou o processo de transição a ultrapassar o projeto de abertura ou autorreforma do regime (VIANNA, 1984), até a campanha das Diretas Já, entre 1983 e 1984. A vitória posterior da oposição no Colégio Eleitoral traduziu-se como chancela formal para a conquista de um governo de transição, em 1985. Como se comprovou em seguida, esse governo de transição seria fundamental para a conclusão institucional da transição, o que se deu com a elaboração e promulgação da Constituição de 1988, considerada a mais democrática da história política brasileira.

Entretanto, a divisão que se estabeleceu entre as forças oposicionistas acabou por ter um efeito negativo fazendo com que as tarefas mais amplas e profundas da transição ficassem à deriva e se estabelecesse uma sensação de inconclusividade. Como afirmou Luiz Werneck Vianna (1989), a partir da divisão das forças da oposição, a transição passou a ser um processo conduzido pelos fatos e desprovido da ação intencional do ator. Neste cenário, a partir dos anos 1990, os governos empreenderam ajustes de caráter econômico apartados de pactos sociais, e não foram capazes de estabelecer, no Estado e na sociedade civil, os elementos essenciais de uma “hegemonia civil”. O “transformismo positivo” conduzido pela oposição democrática desde a década de 1970, que havia sido a operação política possível de ultrapassagem do autoritarismo, foi substituído pelo antagonismo político de polos, muitas vezes artificiais, exaurindo as esperanças da jovem democracia brasileira. Esse desfecho é o maior déficit da transição à democracia no Brasil.

No Chile, todas as tentativas de derrubada da ditadura por via armada fracassaram. As ações armadas, inclusive contra o próprio Pinochet, e as rebeliões populares (protestas), que eclodiram entre 1983 e 1986, revelaram-se impotentes. A batalha decisiva contra a ditadura viria de onde menos se cogitava. A Constituição de 1980, outorgada por Pinochet por meio de um referendo inteiramente controlado, previa a realização, em 1988, de um plebiscito para estabelecer mais um mandato de oito anos para o ditador. Foi em torno da ideia de politizar o plebiscito, negando esse novo mandato, que se vislumbrou a possibilidade de derrotar a ditadura.

A surpreendente vitória eleitoral do Comando por el No (56% a 44%), em outubro de 1988, abriu o processo de transição à democracia. A partir de então, os partidos políticos puderam se reorganizar e a oposição a Pinochet, com exceção do Partido Comunista, criou a Concertación de los Partidos por la Democracia, numa tentativa de manter-se unida para a eleição presidencial prevista para o ano seguinte.

Mas Pinochet, presidente da República e chefe das Forças Armadas, forçou um pacto com a oposição em torno de reformas constitucionais. Este pacto redundou em um referendo, realizado em julho de 1989, para sancionar as reformas da Constituição de 1980 acordadas entre Pinochet e os principais atores políticos legalizados. Nesse ponto, de acordo com Carlos Huneeus (2000), a submissão da transição democrática à “política do autoritarismo” ficou evidente. O referendo sancionou o que ficou conhecido como enclaves autoritarios: normas concebidas para bloquear, sem transgredir a legalidade, qualquer iniciativa reformista que se propusesse desmontar a arquitetura básica do ordenamento jurídico-constitucional do autoritarismo chileno.

Como afirmou Tomás Moulian, a derrota eleitoral sofrida por Pinochet em 1988 converteu-se numa vitória estratégica em 1989, uma vez que se aprovaram apenas reformas superficiais na Constituição de 1980. Este parece ter sido um lance decisivo no processo pelo qual o pinochetismo articulou sua sobrevivência no Chile pós-ditatorial. A passagem do autoritarismo para a democracia, a despeito da vitória no plebiscito de 1988, engendraria um “transformismo negativo” que Tomás Moulian definiu nos seguintes termos:

“Chamo de ‘transformismo’ o longo processo de preparação, durante a ditadura, de uma saída destinada a permitir a continuidade de suas estruturas básicas sob outras roupagens políticas, as vestimentas democráticas. (…) O ‘transformismo’ consiste numa alucinante operação de perpetuação que se realizou através da mudança do Estado. Este se modificou em vários sentidos muito importantes, mas mantendo inalterado um aspecto substancial. Muda o regime de poder, se passa de uma ditadura a uma certa forma de democracia e muda o pessoal político nos postos de comando do Estado. Mas não há uma mudança do bloco dominante ainda que se modifique o modelo de dominação” (MOULIAN, 1977, 145).

Constrangida pelos efeitos do “transformismo negativo”, mesmo assim, a transição seguiria sua marcha. Diferentemente do Brasil, a transição chilena apresenta dois aspectos peculiares: (1) não herdou nenhuma crise econômica do regime anterior e (2) conseguiu eleger sucessivamente quatro presidentes pertencentes a Concertación – a coalizão política que havia derrotado a ditadura.

Os governos da Concertación conduziram com êxito a integração do Chile ao processo de globalização, o que fez avançar os traços de modernidade do país, como a melhoria do setor de serviços, a especialização da produção agroindustrial para a exportação, a despoluição, a inovação e a diversificação empresariais. O crescimento contínuo da economia nesses anos (5% de média anual), até a crise econômica mundial de 2008, foi notável. As temáticas sociais sufocadas durante a ditadura foram reconduzidas como tarefas do Estado, ampliando a coesão social, ainda que as políticas públicas dos governos da Concertación tenham se revelado insuficientes.

A manutenção dos enclaves autoritários, até 2005, acabou por gerar um paradoxo: o regime democrático se consolidava, mas a presença de Pinochet na cena política deixava a sensação de que a transição permanecia inconclusa. A imagem que acabou ficando do Chile pós-Pinochet é a de uma “democracia de má qualidade”, resultante de uma transição muito condicionada aos ditames do regime anterior, que impôs um “transformismo negativo” ao andamento político, atrasando em demasia reformas democratizantes.

Em síntese, a comparação que fizemos aqui pode ser resumida em quatro pontos:

(1) em relação aos golpes de Estado de 1964 e 1973, o que sobressai é a diferença. Eles são distintos na operação, nas justificativas e nos resultados imediatos.

(2) Além de repressivos, conforme modulações específicas, os regimes autoritários de Brasil e Chile promoveram resultados semelhantes no que se refere às transformações sociais orientadas no sentido da liberação do mundo dos interesses, da afirmação do individualismo e do consumismo. Com uma diferenciação: no Brasil se impôs um aggiornamento da modernização enquanto no Chile houve uma ruptura. Os regimes autoritários de Brasil e Chile foram fundacionais, mas no Brasil não houve a imposição normativa de uma “nova sociedade”. No Brasil, o liberalismo econômico não foi, como o neoliberalismo no Chile, um programa ideológico implementado no contexto de uma contrarrevolução exitosa.

(3) No Brasil, há “transformismo” no regime e depois na oposição a ele. Para o regime, o “transformismo” foi um elemento operativo adotado pragmaticamente e levado ao paroxismo, visando controlar as transformações sociais induzidas pelo êxito econômico; para a oposição foi uma estratégia positiva que definiu o andamento da transição a seu favor. No Chile, essa categoria somente iria aparecer como qualificativo convincente, mas negativo, depois de superado o regime autoritário.

(4) o pioneirismo e a longa transição do Brasil contrastam com o encurtamento e a presença militar na transição chilena. Enquanto o Brasil conseguiu aprovar uma nova Constituição (1988), esse ainda é um tema pendente no Chile. O “transformismo positivo” no Brasil, que permitiu o estabelecimento de uma nova ordem constitucional, inaugurando uma nova fase, contrasta com a aparente ruptura provocada pela vitória da oposição no plebiscito de 1988 e com a vitória da estratégia do “transformismo negativo” no Chile, que redundaria numa situação democrática eivada de condicionantes e constrangimentos. Mas, no Brasil, conforme Werneck Vianna (2019) o “trágico desencontro entre o ator e os fatos” (Vianna, 2019) redundou na perda de consenso em relação à ordem democrática, acarretando um recorrente antagonismo político, polarizações sucessivas e diversas, que perigosamente comprometem a unidade da Nação e suas perspectivas democráticas. [1]

[1] Poucos meses depois do evento que deu origem à exposição e ao artigo acima, precisamente em outubro, os acontecimentos se precipitaram no Chile. Por essa razão indicamos aqui o artigo publicado à época, que na revista Caracol aparece como post-scritum. Na sequência, um ano mais tarde, aproximadamente, realizou-se um plebiscito, com comparecimento recorde da população chilena, no qual de decidiu que uma nova Constituição deverá ser elaborada por uma Assembleia Constituinte com representantes eleitos especificamente para este fim, além da paridade de gênero. Confira o artigo em https://horizontesdemocraticos.com.br/a-historia-volta-a-pulsar-no-chile/. (Horizontes Democráticos – 19/03/2022)

Referências bibliográficas

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(Publicado em Caracol, São Paulo, n. 23, Jan./Jun. 2022, Dossiê “Cultura e Política nas relações Brasil-Chile/Chile-Brasil”; https://www.revistas.usp.br/caracol/article/view/182014/180535

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