Marcus André Melo: Por que as democracias do Leste europeu enfrentam percalços?

Legado autoritário e hegemonia regional autocrática explicam vicissitudes da democracia

Montesquieu referiu-se ao “império das planícies” para explicar o despotismo da “Moscóvia à Grande Tartária”. O diagnóstico continua atual: o Leste Europeu, e adjacências, com raras exceções, caracteriza-se por regimes iliberais, muitos com traços sultanísticos.

O surgimento da democracia como arranjo institucional assumiu a forma de ondas: a primeira delas (1820- 1922) envolvendo 29 países; a segunda (1945- 1962), 36. Só na terceira (1974- 2000) alcançou o Leste Europeu e os Balcãs; processo acelerado pela dissolução da União Soviética, em 1991. A menos traumática foi a absorção da Alemanha Oriental na nova Alemanha unificada. No outro extremo, a Belarus permanece bastião autocrático.

Em nenhum dos países do Leste Europeu ocorrera alternância no poder em eleições competitivas e pacíficas na história pré 1991. Eis o padrão comum à região com pequenas variações: monarquias autoritárias (califados), ditaduras militares, regimes comunistas. No pós-guerra, as manifestações democráticas nos países com vida parlamentar pregressa e de maior renda (Alemanha,1953; Hungria, 1956; Checoslováquia, 1968) enfrentaram os tanques soviéticos.

A literatura sobre democratização aponta para o papel da renda e da experiência pretérita com regimes competitivos como os mais robustos preditores da transição (sobrevivência) para a democracia.

Como afirma Przeworski “a democracia é um bem de luxo”: a demanda por esse tipo de regime aumenta com a renda. Sim, há exceções entre os países com renda excepcionalmente elevadas (Singapura, países árabes).

A Rússia é “petro-state” de renda média alta (US$ 29 mil). Aqui é o conhecido padrão de ‘maldição de recursos naturais’ onde o timing é tudo: apenas quando a descoberta de reservas ocorre em um país já democrático (Reino Unido, Noruega, EUA) seu impacto não é devastador. Do contrário, a disputa assume a forma de conflitos redistributivos intensos, desestabilizadores.

A primeira década russa foi excepcionalmente turbulenta pela dupla transição: para a economia de mercado e para a democracia, que foi abortada. A única eleição relativamente livre na história do país, em 1995, foi marcada pelo vale tudo. O abuso de poder subsequente do país levou à perda, em 2004, do status de país livre, no ranking da Freedom House.

Sob Putin desde então o país permanece uma autocracia, que utiliza a mesma narrativa para justificar a tomada de áreas estratégicas e com reservas de petróleo e gás: a expansão da Otan. Causa espécie que alguns analistas recorram a ela —mera peça discursiva do autocrata— como “evidência” de que seja a justificativa de suas de suas ações predatórias. (Folha de S. Paulo – 21/03/2022)

Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)

Leia também

“Reeleição” de Maduro pode desestabilizar continente

NAS ENTRELINHASA situação da Venezuela é um desastre econômico...

A Europa começa a respirar novamente

A Democracia dá sinais claros de resistência no Velho...

Atropelos em série

Lula está se dando conta de que o desafio ao ser eleito presidente não era bloquear a extrema direita bolsonarista: era fazer o País ingressar em outra rota.

Um alerta para o risco de estrangulamento fiscal

Pelo lado das receitas, as medidas aprovadas em 2023, surtiram efeito na arrecadação de 2024. No entanto, muitos dos resultados não se sustentam no futuro.

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!