O conjunto de artigos e ensaios aqui proposto (AGGIO. Alberto, Uma nova cultura política, FAP: 2008), mesmo tendo nascido em ocasiões diferentes e sob estímulos igualmente variados, guarda em si uma coerência e uma obstinação fascinantes: a ideia de que, a partir de sólidas convicções de esquerda, que por isso mesmo dispensam maiores preocupações com a ortodoxia e não receiam “contaminações” com outras tradições políticas e teóricas, é possível dar uma contribuição positiva para a construção, entre nós, de uma cultura cívica democrática.
Vivemos um tempo particularmente opaco, em que a construção ou a reconstrução dos conceitos só pode ser feita através do velho, e modesto, método de tentativa e erro. Sabe-se, com toda a evidência, que há placas tectônicas em movimento, com a construção acelerada de uma economia-mundo e a emergência tumultuosa de um “comunismo dos capitalistas”, os quais, mesmo sendo realidades poderosas, não cancelam tradicionais rivalidades entre Estados-nação e inteiras regiões. Sabe-se, ainda, que estão em crise, provavelmente terminal, as ideologias que acompanharam, há apenas quinze ou vinte anos, este processo mais recente de mundialização e globalização. Refiro-me, por exemplo, às concepções do “fim da história”, do predomínio absoluto dos mercados e de uma versão bastante débil de democracia, no mais das vezes reduzida a alguns procedimentos formais e empacotada for export em ponta de baioneta.
Dado o tamanho do desafio, o autor deste livro convida-nos a nos desfazermos do heroísmo que assinala a identidade da velha intelligentsia, como primeiro passo para conectar democracia e esquerda e assim enfrentar, minimizando os riscos de regressão civilizatória, o que se pode chamar, sem nenhum medo de exagero, de abalos sísmicos que por certo se aproximam. Convida-nos também a nos perguntarmos seriamente se a utopia democrática – por definição pluralista e fundada na liberdade de cada um e de todos – não seria uma resposta adequada ao perigoso abismo que se abre com a crise das ideologias acima mencionada, além de ser, com toda a certeza, o ingrediente absolutamente necessário para afastar os riscos do “organicismo” que povoou a imaginação – e a prática – de socialistas e comunistas no século passado.
E, ao fazer este movimento, o autor não abre mão de um ponto de vista crítico sobre o mundo, o qual continua a ser visto tal como efetivamente é, a saber, um mundo atravessado “por terríveis injustiças e por uma influência desmedida dos interesses privados das classes socialmente dominantes em relação às esferas públicas de decisão”. O autor não abre mão, em suma, de uma visão penetrante sobre as novas e velhas desigualdades que se sobrepuseram e entrelaçaram nestes anos mais recentes, e de modo desafiadoramente intrincado.
A democracia não é apenas um conjunto – sem dúvida, necessário e irrecusável – de regras e procedimentos; é também um ideal de sociedade e de convivência, um modo de se relacionar com o ambiente e seus limites – em outras palavras, um valor universal. Ao considerá-la com todo o rigor possível, homens e mulheres de esquerda não “cedem” nem “capitulam”, e muito menos adotam uma posição defensiva, destituída de potencialidade (auto)transformadora.
Muito pelo contrário. Em países democráticos – como, evidentemente, é o caso do Brasil –, a necessária ação transformadora não pode se esquivar dos correspondentes princípios de legitimação nem pode se inspirar num subversivismo elementar, incapaz de dirigir o conjunto da sociedade e de dar respostas progressivamente consensuais aos problemas de todos. Em países desse tipo, onde não mais se luta abertamente contra a tirania, ensina-nos o autor que “a soberania já não pode ser amputada”, assim como, por outro lado, “não pode mais ser ampliada apenas do ponto de vista normativo”. E a conclusão a que chega é da maior importância: “A sua transformação ou radicalização pode resultar, inclusive, na emergência de um novo tipo histórico de democracia que contemple a possibilidade de superação das desigualdades sociais e a expansão do arco das liberdades, aprofundando o percurso da individualização aberta com o mundo da modernidade”. Uma conclusão parecida com recente afirmação de Habermas, para quem o apego sem ambigüidades aos valores do Estado de Direito é a condição ineliminável de um reformismo forte, que nos leva muito além do status quo.
Na verdade, o que este livro revela é o percurso singular do pensamento de um autor de esquerda fundamentalmente aberto a novas alianças intelectuais e políticas, como quando recupera o conceito, originalmente liberal-democrata, de cultura cívica e o testa em novas circunstâncias; um autor também aberto a dolorosos exames autocríticos, como quando analisa, sob vários ângulos, a experiência do Chile de Allende – este estadista luminoso – e a paradoxal incapacidade manifestada pela sua Unidade Popular de decifrar o enigma que se propusera, o de avançar para o socialismo num regime de liberdades; ou, ainda, como quando analisa o processo mais recente da transição brasileira, cujos atores principais, a começar pelo PT, nem sempre, ou quase nunca, souberam fazer avançar ao mesmo tempo a democracia política e a democratização social e muitas vezes cederam à tentação de pôr um contra o outro estes dois termos incindíveis de todo programa moderno de mudança social.
Em relação à reflexão aqui empreendida, ocorre-me agora um paralelo talvez impressionista e um tanto arriscado. Certa feita, o poeta Drummond descreveu, com a beleza característica, sua particularíssima “procura da poesia” e a luta corporal com as palavras e os poemas ainda não escritos. Garante o poeta que cada palavra e cada poema, ainda em estado de dicionário, lhe perguntavam de modo terrível e até mesmo cortante: “Trouxeste a chave?”. Sem esta “chave do poema”, as palavras rolariam num rio difícil e, desamparadas de melodia e conceito, se transformariam em desprezo. Assim também, imagino, deve acontecer com a tentativa de apreender intelectualmente as coisas que se movem por trás das aparências. É certo que o autor deste livro não tem as respostas todas e é mais certo ainda que jamais teve a pretensão de dá-las de modo perfeito e acabado. No entanto, ao empunhar com firmeza a “questão democrática” nesta sua estimulante investigação, podemos licitamente supor que trouxe consigo a drummondiana chave. (Publicado originalmente como Prefácio a Uma nova cultura política, de Alberto Aggio, editada pela Fundação Astrojildo Pereira, em 2008).