No embate de 2022, os três Poderes serão os mesmos, cada um se alimentando de uma parcela dos ossos institucionais.
O risco maior que seria a polarização Bolsonaro x Lula em 2022 dá sinais de arrefecimento, mas o quadro geral ainda não nos permite confiar que um verdadeiro alívio esteja à vista.
Da candidatura Bolsonaro a inflação provavelmente cuidará. Pode ser que ele não se desidrate por completo, mas os dados disponíveis sugerem essa possibilidade. Lula vencer no primeiro turno também parece muito improvável. Noves fora, isso significa que há tempo para organizarmos o centro: a terceira via, com um candidato forte para se contrapor a Lula.
Tentemos destrinchar essa hipótese.
Lula conserva um formidável cabedal de votos, mas por inércia, não em razão do colorido de seus velhos tempos. O magnetismo que emanava dos palanques do populismo sindical já praticamente não existe. Na estagnação econômica que estamos vivenciando, só um santo milagreiro conseguirá repetir sua velha proeza, a de conservar o amor dos banqueiros e de manter quieta a multidão de miseráveis que forma a maioria de nossa sociedade. No lugar dele – e peço licença para repetir o que aqui escrevi semanas atrás –, iria gozar sua merecida aposentadoria entre os coqueirais de uma ilhota qualquer do Pacífico Sul. Mas sei que Lula, com todos os coqueirais que já viu na vida, não vai acatar meu conselho. Segue-se que ele vai se deparar com duas possibilidades: a derrota no segundo turno para o acima cogitado candidato de centro, ou uma vitória desgastante, daquelas que, como certa vez disse Delfim Netto, o vencedor sai sem um olho, uma orelha e um braço.
E você, meu amigo, que administra um fundo de pensão nos Estados Unidos, imaginará estar descortinando um Brasil supimpa e virá correndo aplicar no Brasil aqueles seus mirrados bilhões de dólares? Não, você não virá, pela singela razão de que você não vai dar piruetas com o dinheiro alheio.
Conhecendo bem a figura, é fácil de imaginar que Lula, se for eleito, subirá a rampa do Planalto certo de haver conquistado mais um mandato de oito anos. Para ele, isso é um direito divino. Pensará que a poltrona presidencial lhe servirá de encosto até 2030, quando completará 85 anos. E acreditará piamente que dela se levantará para descer a rampa ovacionado como o superpresidente, o estadista pacificador-provocador que terá desfeito a (atual) polarização política sem abrir mão dos tradicionais delírios petistas. Já até andou convocando a “militância” para repor na agenda o chamado “controle social da mídia” (leia-se, a censura).
O ponto de chegada do cenário Lula é, pois, um óbvio ululante. Será o triste fim de um político que não conseguiu optar entre o papel de um raso populista e o de um presidente de verdade, disposto a ouvir quem de fato conhece nosso país e as alternativas que nos aguardam bem ali, à frente. Será sempre o político ambíguo que nada viu de errado no estrago que aprontou na Petrobrás e no faturamento de milhões de votos através da partidarização dos programas sociais. Assim, nosso destino como país continuará a ser o de uma senhora que nasceu para Porcina e foi, de fato, uma Porcina: um país aprisionado na “armadilha do baixo crescimento”. Um país com uma das piores distribuições de renda do mundo, com um sistema de ensino em frangalhos e um próspero mercado de ossos garantindo a sopa da noite aos mais desvalidos entre os miseráveis.
Voltemos à “candidatura de centro”. Nos próximos meses, estaremos falando seriamente sobre uma coalizão de centro, capaz de nos trazer de volta à normalidade, ou ouvindo a velha cacofonia do cada-um-por-si, alguns dos quais alimentando a ilusão de ressuscitar partidos que desde há muito deviam ter sido devidamente sepultados? A indispensável lucidez, de onde virá: do espectro aterrador da continuação do que “aí está” ou de um céu pontilhado aqui e ali por aves que ao menos consigam levantar voo? Como regra geral, não me agrada ver políticos pulando de um partido para outro, mas vejo com bons olhos a possível candidatura de Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, senador por Minas Gerais, que acaba de pular do DEM para o PSD. No Brasil, nós só falamos de partidos porque a tanto nos obriga a lei: a filiação a um deles é condição sine qua non para qualquer candidatura.
Sabemos, porém, que a vida política não se reduz ao processo eleitoral. Tivemos 35 anos para fazer uma reforma política séria, e nos esquivamos dessa magna tarefa. No embate de 2022, os três Poderes serão os mesmos, cada um se alimentando de uma parcela dos ossos institucionais. E, mesmo se melhorarem um pouco, salta aos olhos que permanecerão anêmicos, diáfanos, e que a maioria dos cidadãos ainda parecerá disposta a lhes torcer o nariz. Porque a verdade é uma só: sem eleições, tripartição de Poderes e imprensa livre, não há democracia, mas uma democracia que se preze requer uma dedicação dos cidadãos resource owners – quero dizer, daqueles que dispõem de algum recurso, modesto que seja –, dos quais depende o robustecimento da estrutura constitucional vigente.
Bolívar Lamounier, filiado ao Cidadania, é sócio-diretor da Augurium Consultoria é autor de “Antes que me esqueça” (Editora Desconcertos) / Artigo originalmente publicado no Estadão em 6 de novembro de 2021.