Sergio Lamucci: O consumo das famílias e a eleição de 2022

As estimativas para o crescimento em 2022 continuaram a recuar na semana passada, com vários analistas passando a projetar uma expansão inferior a 1% para a economia brasileira no ano que vem – para este ano, as apostas estão na casa de 5%. As novas previsões embutem um avanço modesto do consumo das famílias, que responde por mais de 60% do PIB pelo lado da demanda.

A MB Associados, por exemplo, estima um crescimento de apenas 0,4% para o PIB em 2022, projetando uma alta de 0,5% para a demanda das famílias. O Credit Suisse, que tem uma estimativa um pouco menos pessimista para a expansão da economia no ano que vem, de 1,1%, vê o consumo privado avançando 1,5%. Ainda que mais alta que a previsão da MB, esse 1,5% é um número fraco, que evidencia as dificuldades para Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022. Com juros em alta, inflação persistente e nível elevado de endividamento das famílias, o panorama para o consumo privado no ano que vem é pouco animador.

Em 2006, quando Luiz Inácio Lula da Silva foi reeleito, a demanda das famílias cresceu 5,3%, acima dos 4% da variação do PIB; em 2014, ano em que Dilma Rousseff ganhou o segundo mandato, o consumo privado avançou 2,3%, uma taxa moderada, mas bem superior ao 0,5% registrado pelo PIB. O ano de 1998, quando Fernando Henrique Cardoso foi reeleito, é uma exceção. O consumo das famílias recuou 0,7%, enquanto o PIB cresceu 0,3%. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), porém, teve alta de apenas 1,65% naquele ano e havia a memória recente do tombo da inflação, devido ao Plano Real.

Um dos problemas que complicam o cenário para 2022 é a inflação, que afeta especialmente a renda dos mais pobres. Nos 12 meses até agosto, o IPCA acumulou alta de 9,68%. Para as famílias de renda muito baixa, com rendimento domiciliar inferior a R$ 1.808,79 por mês, a inflação em 12 meses chegou a 10,63%, nos cálculos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

No fim do primeiro mês do governo Bolsonaro, em janeiro de 2019, a cesta básica em São Paulo custava R$ 707,08, segundo pesquisa do Procon-SP e do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), incluindo itens de alimentação, limpeza e higiene pessoal. O valor correspondia a 70,8% do salário mínimo, à época fixado em R$ 998. No fim de agosto deste ano, eram necessários R$ 1.077,01 para comprar a cesta básica, o equivalente a 97,8% do piso salarial de R$ 1.100. No período, a cesta subiu 52,3%, enquanto o salário mínimo aumentou 10,2%. A corrosão da renda pela inflação é um dos fatores que têm derrubado a popularidade do presidente.

Esse cenário de persistência das pressões inflacionárias tem levado muitos bancos e consultorias a apostar num ciclo de alta da Selic bem mais forte do que se imaginava há alguns meses. Para o Credit Suisse, os juros básicos, hoje em 5,25% ao ano, vão terminar 2021 em 8,25%, subindo mais 1,5 ponto percentual no ano que vem, encerrando 2022 em 9,75%. O banco vê o IPCA em 8,5% em 2021 e em 5,2% em 2022, acima das meta perseguidas pelo Banco Central (BC), de 3,75% neste ano e de 3,5% no próximo.

Um fator fundamental para aliviar pressões sobre os índices de preços é o câmbio. Uma apreciação mais expressiva do real teria um impacto benigno sobre a inflação, aliviando as cotações das commodities em reais e dos bens industriais. O ponto é que, num cenário de incertezas fiscais e políticas elevadas, é difícil apostar num câmbio mais forte no ano que vem. O Credit Suisse espera que a moeda americana feche 2021 e 2022 em R$ 5,20, enquanto a MB aposta que a divisa brasileira vai se enfraquecer ainda mais – nas estimativas da consultoria, o dólar vai subir de R$ 5,30 no fim deste ano para R$ 5,60 no fim do ano que vem. Indefinições sobre a trajetória das contas públicas pressionam o câmbio, como as provocadas pelas dúvidas quanto ao pagamento de precatórios e ao financiamento do novo programa de transferência de renda. Causadas por Bolsonaro, as incertezas políticas e institucionais também contribuem para manter o real mais desvalorizado do que sugere a solidez das contas externas. Depois dos discursos em tom golpista nos atos de 7 de setembro, o presidente fez um recuo tático em seus ataques à democracia e ao Judiciário, mas o comportamento de Bolsonaro ao longo do mandato indica que a trégua vai durar pouco.

Com juros em alta e as incertezas fiscais e políticas, o cenário para o mercado de trabalho não é dos melhores, ainda que haja perspectivas mais positivas para o setor de serviços, devido à reabertura da economia – em especial nos próximos meses. Nesse quadro, muitas empresas tendem a ser cautelosas em seus planos de expansão e modernização da capacidade produtiva, o que deverá se traduzir em taxas baixas de expansão do investimento, limitando a contratação de novos funcionários.

O governo federal tampouco dispõe de espaço fiscal para uma grande ampliação do valor e do público-alvo do Bolsa Família. O novo programa, o Auxílio Brasil, deve atingir 17 milhões de famílias a partir de novembro, com benefício médio de R$ 300. Hoje, o Bolsa Família chega a 14,6 milhões de famílias, com valor médio de R$ 190. O Auxílio Brasil não parece suficiente para elevar significativamente a popularidade de Bolsonaro. Em 2020, o auxílio emergencial aumentou a aprovação do presidente, mas o benefício foi pago de abril a dezembro, chegando em alguns meses a 67,9 milhões de pessoas, com cinco parcelas de R$ 600 e quatro de R$ 300. Neste ano, o auxílio foi reeditado a partir de abril, beneficiando 45,6 milhões de pessoas, com um valor médio de R$ 250, sem efeito relevante sobre a popularidade de Bolsonaro.

Para complicar, o nível de endividamento da população está elevado. Segundo pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 72,9% das famílias tinham alguma dívida em agosto, percentual recorde do levantamento. Nesse ambiente, o espaço para o consumidor se endividar é menor. Além disso, empréstimos e financiamentos estarão mais caros, por causa dos juros mais altos. É mais um fator a inibir as perspectivas já pouco favoráveis para o consumo das famílias. (Valor Econômico – 21/09/2021)

Sergio Lamucci, editor-executivo do Valor Econômico

Leia também

Para nossos jovens, a elite política fracassou

Em grande parte, o desinteresse dos jovens pela escola é resultado da má qualidade do ensino, fenômeno que chegou às universidades federais, com altos índices de evasão.

‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

Santa raiva

A tragédia educacional precisa ser vista como a da escravidão.

Como se reconhece um democrata?

Ele se move pelas sendas complicadas da razão, recusando a manipulação das emoções que políticos e governantes fazem regularmente, sobretudo em períodos eleitorais.

Democracia na América

As nações democráticas de todo o mundo, entre as quais a nossa, não podem dispensar a presença renovada dos Estados Unidos nas suas fileiras.

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!