Gabriel Galípolo e Luiz G. Belluzzo: O Plano Biden e o Brasil

No primeiro trimestre de 2021 a Pnad aferiu 33,2 milhões de pessoas subutilizadas e taxa de desocupação de 14,7% (14,8 milhões de pessoas), recordes para a série iniciada em 2012. É o maior contingente de desocupados de todos os trimestres. O nível de ocupação está abaixo de 50%, ou seja, menos da metade da população em idade de trabalhar está ocupada no país. Os desalentados, que desistiram de procurar trabalho, somaram 6,0 milhões de pessoas, também o maior patamar da série.

Ainda assim, a taxa básica de juros da economia brasileira subiu 2,25% neste ano (moveu-se de 2% para 4,25%). O mercado já espera ao menos um aumento da mesma magnitude até o final de 2021, na tentativa de conter a inflação. O IPCA acumulado até maio foi de 3,22% e o dos 12 meses anteriores chegou 8,06%, alta claramente dissociada de uma pressão da demanda interna, própria de uma economia aquecida e próxima ao pleno emprego. Pesam o custo com alimentos, pressionado pela alta nas commodities, e os preços administrados, impulsionados pelo contubérnio entre índices de correção monetária e a variação cambial.

O Brasil é um caso exemplar de país dotado de moeda não-conversível. Em tais condições, é dominante a submissão da política monetária aos movimentos do capital internacional. O registro em 2020 de máximas no déficit primário (R$ 743 bilhões) e mínimas na taxa básica de juros, e o início em 2021 de uma escalada na Selic para tentar conter a desvalorização do real, apesar da fragilidade econômica, deveriam suscitar ceticismo à tese da dominância fiscal e sugerir uma investigação a respeito do “privilégio exorbitante” do dólar. Não faltam estudos de bons autores para tanto.

Diante das análises que omitem essa importante dimensão dos processos econômicos contemporâneos acode-nos a suspeita: o Brasil se deslocou para o planeta Netuno. Essa hipótese peregrina é desmentida pela sincronia de movimentos do risco país entre os ditos emergentes no período da pandemia. Como já abordamos nesta coluna, os recentes movimentos estão associados à elevação dos juros futuros americanos, diante da recuperação econômica esperada após o anúncio do Plano Biden.

Entre os US$ 6 trilhões em programas de estímulo econômico anunciados pela gestão Joe Biden, estão US$ 2,25 trilhões do “Plano de Emprego Americano”, contemplando 2 milhões de casas; internet banda larga para a população rural; saneamento em creches; escolas públicas e faculdades comunitárias, hospitais para veteranos de guerra; estradas, rodovias, pontes, calçadas e ciclovias; financiamento para o transporte público, incentivo aos veículos elétricos com 500 mil postos de carregamento e substituição de 20% da frota de ônibus escolares; terminais de aeroportos e sistemas de balsas fluviais; fabricação de semicondutores, aumento da representatividade nos postos de trabalho e dos estágios; serviços comunitários e cuidados domiciliares a idosos hoje em asilos e pessoas com comorbidades, aumentos salariais para cuidadores.

No Brasil, um programa de tal inspiração poderia enfrentar o verdadeiro déficit público. Praticamente metade da população brasileira não tem acesso a serviços de água e esgoto (instituto Trata Brasil e SNIS). O déficit habitacional monta a 5,876 milhões de moradias (Fundação João Pinheiro). O BNDES estima um déficit de 1.633 Km de vias de mobilidade urbana nas regiões metropolitanas do Brasil. Levantamento realizado em 2020 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) aponta déficit de 18,2 mil leitos hospitalares no Sistema Único de Saúde. É preciso criar cerca de 1,5 milhão de vagas escolares até 2024, apenas para garantir o mínimo exigido pelo Plano Nacional de Educação (PNE). O modal rodoviário concentra 61% da movimentação de mercadorias e 95% da de passageiros, mas apenas 12,4% das rodovias nacionais são pavimentados (CNT).

Programas de investimentos nestas áreas, se coordenados, apresentados e realizados de forma consistente no tempo, com a devida intensidade, podem requalificar o parque industrial brasileiro, reduzir emissão de poluentes, incorporar novas tecnologias, ativar setores de pesquisa, empregar mão de obra em larga escala e elevar a qualidade de vida para o conjunto da sociedade.

Acertadamente, Biden tem sido enfático na defesa e fortalecimento dos sindicatos, sublinhando sua importância na formação da classe que construiu a América. As transformações ocorridas na economia agregam complexidade ao cenário atual. Não apenas a automação reduz a necessidade relativa de emprego de mão de obra, como também a mobilidade global de capitais, bens e serviços incentivou o deslocamento da manufatura para regiões de menor custo. O exército de desempregados, os deserdados das novas tecnologias, propiciou a emergência do empreendedorismo de plataforma.

Os supermercados de bens e serviços em suas versões digitais alcançam dimensão subversiva: seu poder não repousa apenas nos produtos oferecidos aos clientes, mas principalmente nos clientes ofertados aos produtores. As plataformas consolidam o próprio mercado, ao abrigar consumidores inacessíveis para o “empreendedor” que não trabalha conectado (para e ao aplicativo).

A rede de proteção social arquitetada para o capitalismo predominantemente assalariado não acompanhou essas alterações. A capacidade das corporações arbitrarem geograficamente sua produção demanda um esforço de coordenação internacional nas reivindicações por melhores condições de trabalho.

As consequências são ainda mais dramáticas em países que perderam, antes de consolidarem, esta rede de proteção social. No Brasil, onze estados têm mais de 50% dos trabalhadores na informalidade (IBGE). Cidadãos sem direito a férias remuneradas, ao afastamento temporário por problemas de saúde e, em relevante parcela, incapaz de pagar a previdência.

Seria ingênuo, não fosse inumano, imaginar a marginalização desta população para poupar o orçamento público. O Estado é o mediador dos cuidados mútuos que significam a vida em sociedade. Abandonar as pessoas na doença, na velhice e nas adversidades que ameacem suas condições de vida é a derrota da civilização. Dissociar a economia da vida das pessoas é sintoma de uma mente patologicamente alienada da condição humana. (Valor Econômico – 06/07/2021)

Gabriel Galípolo é presidente do Banco Fator e mestre em economia (PUC-SP); Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular de Economia da Unicamp

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