Luiz Carlos Azedo: Só falta a propina

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Antes de mais nada, dois raciocínios básicos: primeiro, quando as políticas públicas deixam de levar em conta a vida banal, ou seja, o dia a dia das pessoas que deveriam beneficiar, estão capturadas por grandes interesses privados; segundo, todo crime deixa um rastro e tem uma motivação, como nos romances noir. Nesse leito, os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid do Senado são como um trem em movimento, têm que chegar na última estação (se não descarrilarem no meio do caminho, é claro). Pois bem, a suspeita de compra superfaturada de 20 milhões de doses da vacina Covaxin pelo governo federal, assunto investigado pela CPI, chegou ao gabinete do presidente Jair Bolsonaro, no Palácio do Planalto. Mais uma vez, ninguém sabe como uma CPI vai terminar.

Na sexta-feira, em depoimento na CPI, pressionado pelos senadores Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Simone Tebet (MDB-MT), o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) afirmou que o presidente Bolsonaro sabia que o deputado Ricardo Barros (PP- PR), líder do governo no Congresso, estaria envolvido em suspeitas de irregularidades no processo de compra da vacina Covaxin. “Foi o Ricardo Barros que o presidente falou”, disse. O parlamentar e seu irmão, o servidor Ricardo Luis Miranda, se encontraram com Bolsonaro no dia 20 de março para relatar denúncias de irregularidades na importação da vacina. Segundo Miranda, o presidente afirmou que levaria a denúncia ao delegado-geral da Polícia Federal (PF), o que não foi feito.

Somente na sexta-feira, Bolsonaro disse que a PF iria abrir um inquérito sobre o caso. Miranda afirma que, ao saber da denúncia, Bolsonaro respondeu: “Se eu mexo nisso aí, você sabe a merda que vai dar. Isso deve ser coisa de ‘fulano’.” Questionado, Luis Miranda disse que não se lembrava do nome. Pressionado várias vezes, porém, apontou Ricardo Barros. Para o presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), o presidente Bolsonaro prevaricou (não cumpriu com seu dever) ao não pedir investigação sobre o caso. “O presidente não mandou investigar absolutamente nada”, afirmou. “Para quem joga pedra em todos, ele prevaricou. Prevaricou”, disse. Barros negou participação no caso: “Não sou esse parlamentar citado. A investigação provará isso. Não tenho relação com esses fatos.”

Tudo errado

Chefe da divisão de importação do Ministério da Saúde e irmão do deputado, o servidor Luis Ricardo Miranda denunciou o fato ao Ministério Público Federal (MPF). Funcionário de carreira da Saúde, disse que foi pressionado por superiores da pasta para acelerar o processo de importação da vacina Covaxin: “Recebi diversos contatos, ligações, chamadas no gabinete, sobre o status desse contrato. Foi uma pressão atípica e excessiva”. Citou Alex Leal Marinho, ex-coordenador-geral de Aquisições de Insumos Estratégicos para Saúde do Ministério da Saúde; Roberto Ferreira Dias, diretor do Departamento de Logística em Saúde da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde; e o coronel Marcelo Bento Pires, ex-assessor do mistério. Para completar o clima noir, no depoimento surgiu uma mulher fatal: a servidora do Ministério da Saúde, que autorizou a importação da Covaxin, Regina Célia Silva Oliveira, cujo depoimento pode ser outra bomba.

Tudo é muito esquisito na compra da Covaxin: (1) no contrato, o pagamento pelas vacinas seria feito à empresa Precisa Medicamentos, representante brasileira da indiana Bharat Biotech, fabricante da vacina, mas na fatura enviada à equipe do ministério constava que o pagamento seria feito a uma terceira companhia, a Madison, localizada em Cingapura; (2) a empresa Precisa Medicamentos tem os mesmos donos da Global Saúde, processada por fraude na gestão de Ricardo Barros quando foi ministro da Saúde; (3) seriam pagos U$ 45 milhões por 3 milhões de doses da vacina Covaxin, o que superava o valor de U$15(R$80,70) por dose previsto; (4) a Covaxin não tinha autorização da Anvisa nem Certificado de Boas Práticas; (5) o pagamento seria feito de maneira antecipada, incluindo o frete, antes da entrega da vacina; (6) a vacina tinha prazo de validade exíguo, de apenas seis meses; (7) o contrato com a Precisa foi assinado em 25 de fevereiro, após autorização de uma servidora do ministério, responsável por fiscalizar o contrato (Regina Célia), atropelando o chefe do serviço de importação (Luis Ricardo); e (8) a compra não foi finalizada, porque o escândalo estourou, mas o governo já havia feito reserva (empenho) de R$ 1,6 bilhão para o pagamento. (Correio Braziliense – 27/06/2021)

Leia também

Deputados querem reduzir o poder do Supremo

Existe um caldo de cultura favorável ao avanço desse tipo de proposta na opinião pública, por causa de decisões polêmicas de ministros da Corte, sobretudo em processos criminais.

‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

Santa raiva

A tragédia educacional precisa ser vista como a da escravidão.

Como se reconhece um democrata?

Ele se move pelas sendas complicadas da razão, recusando a manipulação das emoções que políticos e governantes fazem regularmente, sobretudo em períodos eleitorais.

Democracia na América

As nações democráticas de todo o mundo, entre as quais a nossa, não podem dispensar a presença renovada dos Estados Unidos nas suas fileiras.

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!