Governo comemora como se o desempenho da economia resultasse de suas políticas
Nem tudo o que reluz é ouro. Em 2021, a dívida pública como porcentual do PIB deve diminuir, mesmo sem mudanças estruturais nas contas do governo. A inflação mais alta explica boa parte da expectativa. Não resolve o desarranjo fiscal, mas ilude.
O indicador utilizado para avaliar o risco nas contas do País é a dívida sobre o produto interno bruto (PIB). No numerador, o estoque de títulos e outras obrigações do Estado. No denominador, o fluxo de renda gerado em determinado período. O que mais importa não é o cálculo em um instante do tempo, senão o movimento. O filme, não só a fotografia.
Se a dívida e o PIB crescem no mesmo ritmo, a situação é tida como controlada: os compradores de títulos públicos avaliam que o endividamento é sustentável e o risco de o Estado tornar-se insolvente é baixo. Assim, exigem juros menores para financiar novos déficits, ano a ano, e o País executa suas políticas públicas sem sobressaltos.
Na semana passada, o resultado do PIB do primeiro trimestre de 2021 causou alvoroço. Houve quem o correlacionasse a acertos da política econômica. Na verdade, o efeito estatístico preponderou, dada a recessão de 2020. Crescer depois de cair é mais fácil. O fato novo é a alta dos preços das commodities, que impulsionou os investimentos ligados ao setor agropecuário. Algo alheio ao governo. O afrouxamento da restrição à circulação de pessoas ajudou, mas à custa de mais mortes, como mostrou Affonso Celso Pastore na coluna de domingo.
A subida dos preços das commodities dará fôlego à economia. Filme repetido. Em 2009 o PIB caiu 0,3%, refletindo a crise econômica e financeira internacional. No ano seguinte, alta de 7,5%. Os termos de troca – razão entre os preços dos produtos exportados e importados – subiram 16% entre 2009 e 2010.
Além do crescimento econômico real, o principal evento a afetar a dívida/PIB em 2021 será a inflação. PIB é preço vezes quantidade: o valor em reais de tudo o que é produzido internamente. O deflator implícito do PIB (a medida da inflação dentro do produto interno) é influenciado pela variação de preços nos diferentes setores de produção. Alguns índices mais ligados ao dólar e às commodities encerrarão o ano acima de 20%. O PIB vai crescer por uma taxa real, digamos, de 4,2%, mais a inflação.
Preliminarmente, entendo que a inflação para fins de cálculo do PIB nominal poderá ficar em 7,5%, de modo que o PIB terminaria o ano em R$ 8,34 trilhões. Se a dívida nominal ficar em R$ 7,29 trilhões, representará 87,4% do PIB, abaixo dos 88,8% de 2020. Considero, nas contas, o efeito do PIB mais elevado sobre a arrecadação e a retirada do ICMS da base do PIS/Cofins, que erode a receita pública. O STF modulou essa questão em maio.
Como se vê, predomina o efeito da inflação mais alta sobre as contas públicas. Mas se isso fosse solução, bastaria o Banco Central abandonar o leme e deixar os preços subirem. Não é. Estimo que a dívida/PIB poderá crescer um ponto porcentual (p.p.) do PIB em 2022, assumindo inflação comportada e crescimento econômico real de 2,5%.
O ponto de partida mais baixo para a dívida/PIB, provocado pela inflação maior, em 2021, facilitará a tarefa de consolidação fiscal no médio prazo. Contudo não anula o desafio de elevar receitas e cortar gastos. Mesmo em patamar menor, a dívida estará 35 pontos porcentuais do PIB acima da média observada nos países em desenvolvimento.
Alguém poderia cogitar de que o deflator do PIB será alto novamente em 2022. Bem, nesse caso, teríamos assimilado uma inflação maior por mais tempo. Os juros subiriam mais fortemente, o custo médio da dívida cresceria e a ilusão de ter resolvido o problema fiscal (aceitando mais inflação) se desmancharia no ar. Típico de tudo o que não é sólido.
O governo comemora o desempenho da economia como se fosse resultado de suas políticas. Afinal, quando falta pudor, quem conta um conto aumenta um ponto. A provável queda da dívida/PIB causada pela inflação também é aplaudida pelo mercado. Já embarcaram no otimismo e nem sequer ficam ruborizados. Esvaziam a alma, mas engordam os bolsos.
Ribamar Oliveira – Assistia a uma aula do mestrado quando meu telefone tocou. Era o Ribamar Oliveira. Na época trabalhava com contas públicas na Tendências Consultoria e por dever de ofício lia suas colunas no Valor. Ali começou uma relação que se intensificou no fim de 2016, quando assumi a diretoria executiva da recém-criada IFI. Em março nos falamos pela última vez. Ele compartilhou comigo a descoberta de mais uma manobra fiscal. Antes de todos, notou que as despesas obrigatórias do Orçamento de 2021 estavam sendo cortadas para abrir espaço a emendas. Acertou em cheio. Riba movia-se pela curiosidade intelectual, pelo desejo de descobrir o malfeito e de jogar luz sobre as contas do governo. Lembro-me de que, em meio às mensagens de trabalho, trocávamos dicas de música para desanuviar. A covid-19 o levou, mas a falta de vacina, como em tantos casos, foi a causa da morte.
Honraremos sua memória trabalhando e mostrando a inépcia deste governo, Riba. Que falta você fará! (O Estado de S. Paulo – 08/06/2021)
FELIPE SALTO, PRIMEIRO DIRETOR EXECUTIVO DA IFI. AS OPINIÕES NÃO VINCULAM A INSTITUIÇÃO