“Aprendemos ao longo de um século de história. Erramos e acertamos. Mas não deixamos de olhar pro futuro nem abrimos mão de princípios”, diz Freire
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Nem todas as vertentes político-ideológicas da modernidade demonstraram capacidade de espraiar sua influência pelo mundo de forma orgânica, ou seja, por meio da construção de partidos políticos com identidades correspondentes. Isso ocorreu com o liberalismo e também com o socialismo, duas sólidas culturas políticas da modernidade que atravessaram os dois últimos séculos e ainda se fazem presentes. Expressando temporalidades históricas próprias, o conservadorismo foi mais fluido e opaco, enquanto o comunismo foi mais denso e concreto, por meio da organização ao redor do mundo do “partido da revolução global”[1].
A social-democracia foi uma das vertentes políticas da modernidade que conseguiu se tornar referência em termos mundiais, ao longo dos últimos 150 anos, embora de maneira disforme. Com suas origens no movimento dos trabalhadores, os partidos social-democratas da Europa mantiveram afinidades durante muito tempo e hoje, com outros aliados, são o sustentáculo da União Europeia (UE). Nos EUA, a social-democracia não se estruturou como um partido político individualizado, mas se mantem como uma forte corrente político-cultural no interior do Partido Democrata. Na América Latina, a organicidade da social-democracia teve uma influência muito dispersa, por vezes confundida com o que no continente costumou-se caracterizar como “populismo”. Mesmo assim, muitos partidos na América Latina julgam-se pertencentes ao campo social-democrata e alguns, em particular, manifestam ojeriza ao mencionado “populismo”. Em função da influência da Revolução cubana de 1959 sobre a esquerda do continente, que acabou criando uma “muralha chinesa” entre reforma e revolução, a social-democracia, tornou-se um anátema e foi, quase sempre, rejeitada como parte da esquerda latino-americana.
De um ponto de vista geral, principalmente na Europa, a social-democracia foi o nome que identificou o socialismo não revolucionário na primeira metade do século XX, especialmente para diferenciar-se do bolchevismo, vitorioso na Rússia em 1917. Na segunda metade do século XX, a identificação da social-democracia passou a ser a de um socialismo democrático, contraposto ao modelo soviético e fundado na busca da igualdade social com base na manutenção da liberdade[2].
A partir da década de 1970, o modelo soviético começou a dar mostras de esgotamento e já não apresentava os resultados econômicos que tornou a URSS uma das potencias mundiais do Pós-guerra. Essa situação se refletia na vida social e também evidenciava que aquele socialismo não era capaz de inovação, além de se apresentar também como destruidor do meio ambiente. O chamado “socialismo real” não se evidenciou apenas totalitário e seu fracasso em termos econômicos e sociais tornava-se evidente. Estava claro que o controle centralizado da economia, a estatização dos meios de produção e a ideia utópica de cancelar o mercado impulsionavam mais o totalitarismo burocrático do que geravam felicidade e bem-estar social.
A derrubada do muro de Berlin e o colapso do socialismo soviético, e todos os acontecimentos que a partir dai se sucederiam, deveria significar uma vitória da social-democracia. Contudo, não foi o que ocorreu. O que veio em seguida foi a emergência fulgurante do neoliberalismo promovendo a imagem de um triunfo do capitalismo sobre qualquer tipo de socialismo, mesmo aquele pregado pela social-democracia.
Isto aconteceu porque a sociedade que havia sido construída na Europa Ocidental depois da II Guerra, marcada com o rótulo social-democrata, entrou em crise. O modelo de sociedade identificado como social-democrata, montado a partir de uma gestão keynesiana da economia, que garantia coesão social, pleno emprego e um crescimento sustentável tornou-se sinônimo de Estado de Bem-estar social, atraindo o consenso de forças políticas para além da social-democracia, forças de esquerda e de direita que iam da esquerda reformista vinculada ao comunismo até a democracia cristã. Uma crise fiscal de financiamento acompanhada – e também causada – pela crise do petróleo, a partir de 1973, passou a questionar o funcionamento e as bases daqueles “anos dourados” da social-democracia europeia. A crise do modelo social-democrata atingiu diretamente suas bases eleitorais: o antigo proletariado industrial sindicalizado deu lugar a uma classe trabalhadora diferente que vive de subempregos e contratos de curta duração; são jovens que nunca conheceram a estabilidade de uma ocupação fixa, o que gerou mais insegurança do que certezas e esperanças no futuro. Com a globalização vieram o medo aos imigrantes e as desconfianças em relação aos governantes. Identificada como parte do poder, a social-democracia foi atingida em cheio, perdendo militantes, aderentes e votos.
No interior dessa crise, que atravessa as últimas décadas do século XX, irá crescer uma nova direita, com visões distintas a respeito das prioridades sociais e um modelo antagônico de crescimento econômico. Confrontando a social-democracia, diversas facções dessa nova direita introduziram uma cunha social e ideológica na opinião pública mundial com a pregação de uma crença cega no mercado. Essa concepção de mundo acabou difundindo a ideia de que a intervenção pública e a regulação dos mercados advêm de uma ideologia fracassada: o socialismo. A social-democracia fazia parte desse campo e passou a ser questionada como uma “força política tradicional”, sem capacidade de enfrentar ou lidar com os “novos tempos”. Viriam então mais de 30 anos de hegemonia conservadora. O que se objetivava era a implementação de reformas estruturais que liberassem o mercado de qualquer intromissão política, garantindo a ele mais eficiência.
Em situação bastante difícil e complicada, a social-democracia passou à defensiva e buscou estabelecer uma perspectiva europeia para suas ações e dar um desenho novo às suas tradições. É nesse momento que emerge a identificação da social-democracia como uma “ideia europeia”, o que vai produzir um grande impulso ao processo de unidade da Europa[3]. Essa foi uma das vertentes, mas outras emergiram no seio da social-democracia, não necessariamente antagônicas a essa. Aquela que iria predominar, a partir da década de 1990, será a que passou a adotar até mesmo algumas orientações liberalizadoras, como as privatizações e a reforma administrativa do Estado. Essa vertente renovadora da social-democrata foi caracterizada como “Terceira Via” porque se antepunha simultaneamente às impetuosas propostas do neoliberalismo e à tradicional configuração da antiga social-democracia. Desde o final da década de 1990, a “Terceira Via”, a partir da Alemanha, com Gerhald Schröder, e da Grã-Bretanha, com Tony Blair, influenciou os social-democratas para além da Europa.
Para estes renovadores, era fundamental liberalizar o mercado de trabalho e facilitar os contratos de curta duração para gerar mais empregos. Foi um movimento profundo no mundo social-democrata que chegou a declarar inclusive a obsolescência da oposição entre direita e esquerda. A partir dai, a social-democracia europeia passa a se reconhecer como centro-esquerda. Outras vertentes políticas da esquerda europeia fizeram o mesmo, como os sucedâneos do Partido Comunista italiano (PCI), até o atual Partido Democrático (PD). O resultado não se fez esperar: os partidos social-democratas, que haviam governado e construído uma sociedade “à sua imagem e semelhança” foram progressivamente derrotados nas eleições, o mesmo acontecendo com as forças políticas que se aliaram a eles. Essa tendência eleitoral iria fincar raízes e marcaria o início do século XXI.
Ainda que o objetivo não fosse construir uma situação idílica definida como um “consenso de centro”, o que acabou acontecendo foi o estabelecimento de tantas semelhanças entre políticas públicas de esquerda com as de direita que esquerda e direita invariavelmente se sucediam no poder ou até mesmo passaram a governar juntas. A partir desse momento não seria mais possível deixar de identificar a social-democracia com o que se denominaria à época de social-liberalismo, cujo pedra de toque era a demanda de equilíbrio fiscal como uma nova conduta dos governos social-democratas e, por isso, os sindicatos deveriam assumir novos papeis de cogovernança, num contexto de mudanças tecnológicas profundas, o mesmo sendo demandado de suas bases populares.
A equalização dessa nova política com o modelo de sociedade da social-democracia passou a ser decisivo para a social-democracia, na medida em que a questão não era mais a de sustentar sua identidade como representante dos antigos partidos operários ou de trabalhadores e sim continuar a defender aquele modelo de sociedade, mas adaptando-o a uma sociedade que se tornou mais “individualista”, menos solidária, descrente do poder público e da política democrática. A política da social-democracia não poderia, então, deixar de apresentar orientações que lhe eram caras, combinadas a novas demandas que emergiam de uma “nova sociedade”, na qual se deveria, em síntese, “ressaltar o papel do Estado como regulador, a proteção social e defesa da renda dos trabalhadores, o investimento público para melhorar a infraestrutura, a saúde e a educação como condições para o crescimento da prosperidade a médio prazo, mais inovação e desenvolvimento; defendendo, também, a tradição de tolerância e as liberdades individuais que a social-democracia herdou do liberalismo” [4].
A crise financeira de 2008 acendeu todas as luzes vermelhas e a eclosão do problema dos refugiados gerou caos, desorientação e descrédito frente às instituições democráticas, com a contestação, por vezes raivosa, de grupos políticos de extrema-direita bem como a emergência de movimentos e partidos concorrentes à social-democracia, como o “Podemos”, de Pablo Iglésias e Íñigo Errejón, na Espanha, e a “França Insubmissa”, de Jean-Luc Mélenchon. Erguendo velhas bandeiras da esquerda, eles deixavam claro, por contraste, como os velhos partidos social-democratas haviam mudado e/ou perdido seu perfil. A luta contra a igualdade ainda se manteve como um objetivo programático da social-democracia, mas, no final da primeira década do século XXI, ao invés de centrar força nesse objetivo os partidos social-democratas “optaram pelo que acreditavam ser uma precaução: apoiar a ideologia pró-mercado então dominante. E assim perderam a partida”[5].
Entretanto, os efeitos duradouros da crise de 2008 voltaram a colocar em questão a eficácia da desregulamentação e a crença integral de que o mercado podia regular toda a vida social. Os questionamentos às orientações neoliberais voltaram à tona e a social-democracia mostrou que ainda não estava morta. Mesmo assim, o panorama eleitoral não se alterou demasiadamente. Dez anos depois, a social-democracia europeia, em seu conjunto, ainda não havia se recuperado eleitoralmente, nem seus aliados mais próximos. As vitórias eleitorais recentes e a formação de governos de coalisão em países significativos da Escandinávia, na Alemanha, na Espanha, em Portugal e, quiçá, no Chile, podem ser indicativos de alguma recuperação.
E o Brasil? No Brasil, o cenário não é menos complicado. Apenas como ilustração, até 1987, o Brasil não tinha um partido político que expressasse aberta e intencionalmente sua vinculação com a social-democracia. Isso só aconteceu com a criação do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) e, como vimos, já na fase de forte inteiração com o social-liberalismo. Até hoje o único partido brasileiro filiado à Internacional Socialista (IS), organização de referência global dos partidos social-democratas, é o Partido Democrático Trabalhista (PDT)[6]. Nem o Partido Socialista Brasileiro (PSB) nem o Partido dos Trabalhadores (PT) se assumem como social-democratas. Isto não quer dizer que a adesão aos valores da cultura política social-democrática não tenha existido na história política do país ou não se expresse nos dias que correm em grupos políticos, partidários ou não, ou mesmo em personalidades políticas de presença marcante na vida nacional.
A social-democracia no Brasil não é, certamente, uma “ideia fora do lugar”, mas sua história e os desafios do presente só podem ser compreendidos por meio de um tratamento analítico que mobilize o filtro da “tradutibilidade das linguagens políticas” (Gramsci) e o vincule às trajetórias de vida de militantes e dirigentes políticos de carne e osso, levando em consideração suas idiossincrasias e limites. Mas, como em todo o mundo onde vicejou, com suas crises e metamorfoses que impactam sobre os desafios atuais, fica a pergunta: ela ainda respira? (Publicado simultaneamente em Estado da Arte, em 02 de fevereiro de 2022; https://estadodaarte.estadao.com.br/aggio-horizontes-social-democracia/)
[1] PONS, Silvio. A revolução global – História do comunismo internacional, 1917-1991. Rio de Janeiro/Brasília: Contraponto/FAP, 2014.
[2] PARAMIO, Ludolfo. La socialdemocracia. Madrid: Catarata, 2009.
[3] GLOTZ. Peter. Manifiesto por una nueva izquierda europea. Madrid: Fundación Pablo Iglesias/ Siglo XXI, 1987.
[4] PARAMIO, Ludolfo., op. cit. p. 83-84.
[5] SASSON. Donald. Sintomi morbosi – nella nostra storia di ieri i segnali della crisi di oggi. Milano: Garzanti, 2019, p. 126.
[6] A filiação do PDT à IS se prende às relações de Leonel Brizola com Mario Soares, líder do PS português, quando do exílio do líder trabalhista. Quanto ser apenas esse partido membro filiado a IS talvez esteja ligado ao antigo critério de filiar apenas um partido por país. Pode-se consultar: https://www.socialistinternational.org/about-us/members/
‘Apoio a ditaduras revela esquerda anacrônica’, afirma Alberto Aggio
Historiador diz que Lula tem papel ambíguo entre a ideia da revolução e a social-democracia (Foto: Reprodução/Felipe Rau/Estadão)
Marcelo Godoy – O Estado de S. Paulo
O historiador Alberto Aggio acredita que parte do PT mantém a defesa da ideia da revolução em vez de se comprometer com a democracia como um valor universal. É essa opção, que se opõe à modernidade e não reconhece a necessidade das instituições do liberalismo político, que explica por que setores do partido apoiam ditaduras como a de Daniel Ortega, na Nicarágua, ou de Nicolás Maduro, na Venezuela. Ele aponta ainda o papel ambíguo desempenhado por Luiz Inácio Lula da Silva e diz que as eleições no Chile devem servir de alerta ao Brasil. Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Aggio é especialista na história política da América Latina e autor de Um Lugar no Mundo: Estudos de História Política Latino-Americana. Leia, a seguir, sua entrevista ou aqui.
Em que medida o modelo cubano de revolução ainda influencia setores da esquerda brasileira?
Se formos pensar nas forças principais da esquerda brasileira, o modelo cubano se espraia por diversos partidos e correntes e as mais expressivas delas são as correntes dentro do PT, embora o PT não seja inteiramente cubano. Há muita simpatia a esse nacionalismo também no PDT e no PSB. Eles guardam um certo espírito pré-1964. Aí o modelo cubano deita raízes e não desaparece porque a ênfase forte dessas correntes não é o tema político da democracia e das instituições, mas é o tema econômico, do desenvolvimento nacional. Ainda estão naquela chave de leitura das situações de dependência da América Latina e que só se pode sair disso confrontando o imperialismo. De certa forma, esse repertório dificulta alianças políticas. E quando elas ocorrem não são programáticas, mas superficiais.
Como a esquerda deveria se posicionar diante das manifestações que ocorrem em Cuba?
Se é verdade que a esquerda que apoia Cuba acredita na soberania dos cubanos sobre o território e o Estado, fica evidente que o comando do Estado cubano faz com que o próprio povo não tenha liberdade e soberania sobre esse Estado. A repressão que se estabelece permanentemente em Cuba é um atestado de que na Ilha os cubanos não têm soberania. Se é verdade que Batista usurpou a soberania popular, em Cuba há uma permanente usurpação dessa soberania. Cuba não tem representação democrática, a sociedade não se representa democraticamente no Estado.
Na semana passada, um dirigente do PT divulgou nota de apoio à eleição de Daniel Ortega, na Nicarágua. O que leva setores do partido a apoiar ditaduras na Nicarágua e na Venezuela?
O apoio a ditaduras parte de uma esquerda anacrônica e passadistas que ainda está dentro do paradigma da revolução, mas que sabe que a revolução não tem mais a perspectiva da guerrilha, do foquismo e da luta armada, tipo Carlos Marighella e Che Guevara, mas quer manter ainda uma perspectiva de emergência de massas na política com um programa cada vez mais radicalizado para acentuar contradições na expectativa de chegar a situações pré-revolucionárias.
Há dificuldade afetiva de setores da esquerda em criticar Cuba e Ortega?
Acredito que existe sim. Todo elemento de mito na esquerda provoca esse tipo de relação de afeto, que é um sentimento de defesa, quase se materializando na ideia de que tomar um caminho crítico seria uma traição à revolução, ou que seria fazer o jogo dos exploradores, dos opressores e da direita. Quando fiz um comentário crítico ao personagem do Marighella, recebi esse tipo de reação, contra o rompimento com o que chamo de teoria pura da revolução. Na medida em que o paradigma da revolução sobrevive, ele é tratado de diversas maneiras e uma delas é essa: a defesa de Cuba, da Venezuela. E lideranças políticas, movimentos e até intelectuais que atuam dessa maneira.
Qual o papel de Lula na forma como o PT enxerga Cuba, a Venezuela e a Nicarágua e como o partido se relaciona com a democracia?
O papel do Lula é fazer essa ponte com esse passado do paradigma da revolução sem assumi-lo. Lula negocia com os protagonistas desse paradigma, que buscam se adaptar. Ele faz uma ponte com a herança dessa esquerda, que está no PT, nos ex-integrantes da luta armada e na Igreja da teologia da libertação. Lula expressa o sindicalismo de resultados que negocia com esse campo. Ele nunca quis ser afiliado à social-democracia europeia, tanto é que o partido afiliado à Internacional Socialista era o PDT e não o PT. Ele não pode ser isso, pois, ao assumir isso, perderá o contato com os protagonistas do paradigma da revolução.
Lula manteria a ambiguidade ao viajar à Europa e se encontrar com líderes da social-democracia comprometida com a globalização e com o liberalismo político, como Olaf Scholz?
Mas ele não fala nada nesse sentido (da social-democracia). O que ele fala é o que essa social-democracia lá quer ouvir, que ele aqui é o protagonista da luta contra as elites, contra as oligarquias, o atraso, a violência e a queima da Amazônia. Alguns temas se vinculam à social-democracia de lá, mas ele tem de ser um protagonista contra a injustiça que existe nos países subdesenvolvidos e, como a Europa não fará mais a revolução e não apoia mais um personagem que venha do atraso, a social-democracia europeia preza muito bem protagonistas como Lula, que são, na visão deles, a expressão da luta contra a miséria e a pobreza fora da Europa, algo que vem dos socialistas franceses de (François) Mitterrand e dos socialistas italianos, como Lelio Basso. Lula mantém essa ambiguidade. Ele não assume nem o discurso do paradigma da revolução nem a identificação com a social-democracia. Qual é a lógica da política internacional do Lula: é o capitalismo brasileiro ocupar um lugar no mundo, o que o Luiz Werneck Vianna chamou de ‘capitalismo grão-burguês’. E também não assume a lógica dos que falam na democracia como valor universal, que também tem como referência o socialismo. Lula sempre recusou as duas identidades gerais da esquerda: a comunista e a social-democrata. E nunca assumiu a identidade revolucionária guevarista, mas sempre transitou entre ela, o que faz com que ele seja o personagem que é. O projeto dele é fazer com que a economia cresça e o consumo se amplie e as classes populares cheguem a um patamar de classe média. O centro dessa política é o consumo. Não é educação, ciência, tecnologia ou o rearranjo dos vetores de mercado.
Temos eleições no Chile. Que tipo de implicações elas podem ter para o continente e o que podem ensinar para o Brasil em 2022, caso se confirme um segundo turno entre a extrema-direita e a esquerda?
A vitória da extrema-direita seria terrível, mas uma grande lição, que é a mesma lição do radicalismo jacobino na Revolução Francesa e, depois, a vitória da reação. Isso tem muito a ver com o comportamento das elites políticas. A rua, as mobilizações radicais e massivas que ocorreram no Chile não conseguem ser produtivas do ponto de vista político para avançar na democracia sem mudar as elites políticas e rejeitar o passado. A vitória do estalido em 2019 atacou um ponto: a Constituição de 1980, mas também a centro-esquerda concertacionista. Esse levante social acabou destruindo a política concertacionista e se representou em forças de esquerda. Essas forças foram nos últimos meses radicalizando cada vez suas posturas e isso fez com que uma parte da sociedade, que é forte no Chile, resgatasse o tema da ordem no cenário político. José Antonio Katz (Partido Republicano, extrema-direita) representa essa reviravolta, que é um apelo à ordem. Em relação a nós, fica evidente que a eleição chilena será uma advertência sobre como queremos o futuro da nossa democracia. A vitória de Katz significa fortalecimento de Bolsonaro. A fratura entre esquerda e centro-esquerda é desastrosa para a democracia. O Chile é o grande exemplo de como o paradigma da revolução se manteve subterraneamente. Como isso de traduz politicamente? Pode resultar em Katz, da extrema-direita ganhar a Presidência. A democracia na América Latina rejuvenesceu na luta contra o autoritarismo e começa a vivenciar os problemas teóricos políticos e sociais da integração de massas ao sistema democrático e da resolução dessa equação, de como conectar o social ao político na democracia. Uma história que mantém o tema da revolução como central gerou indefinições que não gera avanços democráticos. A confiança na democracia se estabelece com muita dificuldade, assim como as realizações da democracia são vistas com muita desconfiança. E aí chegamos no terreno da antipolítica, no qual o PT e Lula expressaram essa antipolítica. No fundo aqui a antipolítica é traduzida como antidemocracia pela direita bolsonarista ou como redenção de um único ator que é capaz de resolver os problemas da sociedade brasileira, na esquerda petista. Você tem mitos dos dois lados: o bolsonarismo, que é um regresso em si mesmo, e Lula, que acena com a volta do grande país e da sociedade. Bolsonaro é uma reação à democracia como um todo. Ele não é antipetista, mas antidemocrático. E Lula, como expressão dessa esquerda que ainda guarda relação com Cuba e Nicarágua, expressa essa ambiguidade de um paradigma que não foi ultrapassado em definitivo aqui, o da revolução.
Para superar esse risco seria necessário o comprometimento de todas as forças políticas com a democracia e o abandono da ideia de revolução?
Isso de saída, como pano de fundo, como cimento de uma nova cultura política. Abandonar o paradigma da revolução e se instalar definitivamente no paradigma da democracia, que é complexo como o nosso tempo. O tema democrático é um tema que exige uma atenção e uma dedicação, uma convergência e um diálogo de diversos atores, pois o tempo da democracia é de múltiplas dimensões dentro do presente. Não é o tempo agudo da revolução, do antes e depois. Produzir consenso é necessário na democracia. Nós sabemos que nossa democracia está em um ponto de mal-estar. A sociedade julga que as coisas não estão boas, com altos salários e o número excessivo de gente no Estado brasileiro. É extraordinário ver o número de pessoas no Brasil que está vivendo da política. É necessário pensar uma reforma política saneadora da nossa democracia? É evidente. A sociedade precisa ver que a democracia muda a vida num contexto de paz e não de exacerbação de contradições.
O senhor diz que a permanência do modelo da revolução na esquerda faz com que a política se torne um jogo de soma-zero. Não se produz consenso e a política acaba capturada pela antipolítica. É como se nossa esquerda não tivesse feito a reflexão sobre a democracia feita, por exemplo, na Itália, no pós-guerra?
Você colocou uma palavra-chave que é a ideia de consenso. Se você pensar no fim da Segunda Guerra, na Itália, com o (Palmiro) Togliatti voltando ao país e redefinindo o Partido Comunista na Itália, o que está na cabeça do Togliatti e do partido é o reerguimento da Nação por meio da República. Esse é o consenso. E ele tem uma chave: o antifascismo. Esse consenso permite com que forças políticas se digladiem – e isso aconteceu por décadas entre o PCI e a Democracia Cristã – porque havia um consenso e, assim, podiam divergir profundamente. No caso nosso, quando estamos superando o autoritarismo aqui, as forças políticas da esquerda, especialmente essas que ainda mantêm uma visão cubana da política, com a revolução como centro da sua representação, não permitem consenso, pois há uma oposição clara e profunda entre revolução e democracia. Há uma autor alemão, o Norbert Lechner, que matou a charada: os anos 1980 começam com uma mudança de paradigma na América Latina que ultrapassa o tema da revolução. O novo problema da esquerda e dos intelectuais é a democracia. Existem correntes aqui no Brasil que não assimilaram essa mudança de paradigma. E, se assimilaram, o fizeram de maneira precária e trabalham taticamente o tema da revolução no contexto da democracia. Essa utilização instrumental da democracia deriva de não ultrapassar o modelo cubano na América Latina.
Isso é que explica o surgimento de fenômenos como Maduro e Ortega?
Sim. Exato. Chávez, Ortega. É muito contraditório se você compreende e faz uma leitura da política latino-americana com esses dois eixos: revolução e democracia. A revolução exige uma ruptura, um antes e um depois. Ela tem uma noção de tempo político agonística enquanto a democracia, na medida em que ela supõe a valorização de instituições e o reconhecimento do outro, o tempo da política para ela é alargado e indefinido. Não tem teleologia na democracia, enquanto a revolução busca uma teleologia, um tipo de sociedade ideal e mobilizador.
A revolução tem uma visão escatológica da história?
Isso sim, do ponto de vista teórico, que guarda uma relação forte com a revolução. Mas a realidade se confronta com essa visão, esse bolchevique, esse guevarista, esses castristas que mantém essa visão vão ter de se moldar à realidade. Aí você vê os sintomas mórbidos, os fantasmas. O Lula é quê? Ele é um revolucionário? Aí você vê ele tirando uma foto em Cuba. Aí começam a aparecer essas figuras que se mostram indefinidas. E todo artifício é válido para justificar isso. Como no filme Marighella em que o sujeito pergunta ao personagem: e você o que é? É trotskista, stalinista, leninista? E o Marighella responde: “Não, eu sou brasileiro”. Quantas vezes a gente não viu o Lula responder da mesma maneira. Pois ele não pode enfrentar o problema. Essas questões todas se misturam e, como a realidade se apresentou de outra maneira, vem outro plano, que é dos interesses da sociedade capitalista e modernizada. Nos anos 1980 e 1990 havia um consenso da emergência da democracia com predomínio da esquerda que lutou pela democracia sem as armas e dos liberais, o que deu na Constituição de 1988. Muitos, no entanto, como (Francisco) Weffort e até Fernando Henrique Cardoso, defenderam a ideia de que o Brasil não precisa de consenso, mas de explicitar os conflitos. O processo de construção da democratização brasileira depois da ditadura tem o seu tempo, seu auge na Constituição de 1988, mas já carregando essa ideia de que quem fala em consenso é regime autoritário. Esse é um grande problema teórico que a democratização brasileira carregou. Ela se fixou na ideia de que superar a ditadura seria destravar os conflitos sociais que as instituições teriam de cuidar em vez de construir uma ideia de consenso. Por isso não houve na democratização brasileira um “partido” da Constituição democrática de 1988. Não teve esse consenso. Essa ambiguidade permanece e a origem dela é o pacto teórico e intelectual entre essas duas ideias: a de consenso e a de conflito. Houve um predomínio maior da ideia de conflito do que da ideia de consenso. O PT é o partido que exacerba o conflito, condena o consenso e traduz o conflito na ideia de eleição. E não tem tido a capacidade para construir a ideia de consenso e resolve isso dizendo para a sociedade que com ele tudo será diferente. Aí chegamos na soma-zero: o Brasil só vai ter jeito conosco, nós que expressamos, no conflito, o povo justo e puro, seus interesses e, portanto, a nós é que deve caber a construção do Brasil, independentemente de outras forças. O PT não tem reconhecimento das outras forças do ponto de vista político. Escolhe-se para vice um empresário e não um partido no qual o setor empresarial aposte. Como se o único partido legítimo fosse nós. Aí, a teoria, epistemologia da revolução volta para o PT.
Como esse mito se relaciona com a modernidade?
Ele quer se combinar com interesses modernos da sociedade e vai merecer sempre uma espécie de composição estranha. Como é que faz? O Lula com os grandes empresários vão vender o Brasil para o mundo. O Lula vira um representante do capitalismo brasileiro, para ser um capitalismo de referencia mundial. Mas ele não é o representante dos setores populares, dos trabalhadores? Acaba-se gerando um monstro, aquilo que o Chico de Oliveira chamou de ornitorrinco, um animal raríssimo que só existe em determinadas situações específicas. Combinamos o mito da revolução com os temas da modernidade e a expressão dos setores populares com os do capital e tudo vindo da sociedade e não do Estado, como expressão do processo de democratização brasileira. Isso significou o não abandono do mito da revolução e uma adesão pragmática ao novo paradigma da democracia, que resultou em uma combinação extravagante.
Existe um marco nessa discussão sobre a democracia na esquerda brasileira que é o texto do Carlos Nelson Coutinho sobre a democracia como uma valor universal. Nele, Carlos Nelson dizia que a democracia não tem delimitações geográficas. Disse isso em um tempo que o mundo era dividido em Ocidente e mundo socialista, dentro da visão do Enrico Berlinguer de que era necessário estabelecer uma visão nova entre socialismo e democracia…
A expressão “democracia como valor universal” é do Berlinguer (então secretário-geral do PCI), que ele pronunciou em Moscou, no 60.º aniversário da revolução bolchevique. Aquilo foi um espanto. E tomou como referência direta a chamada cultura política do comunismo italiano, como diferenciada do comunismo soviético. Essa ideia da democracia como valor universal tem grandes implicações para a mudança da história do comunismo. Depois de 60 anos, um líder de um partido comunista ocidental vai à Moscou e diz que o caminho, no fundo, não é do dos soviéticos, do stalinismo ou do stalinismo renovado do Kruchev etc. Ali há um desafio para o Berlinguer, que ele não conseguiu levar a bom porto. O Carlos Nelson publica esse ensaio em 1979, antes da queda do muro de Berlim. O Carlos Nelson traz esse tema para cá durante o processo de autorreforma do regime. O texto dele é chave. O PT ainda não havia nascido. Qual a grande orientação da esquerda? A esquerda tinha de mudar: o paradigma da democracia suplanta o paradigma da revolução? Para o Carlos Nelson Coutinho sim, mas para ele não suplanta o paradigma do socialismo e do comunismo. O texto dele tem essa ponta. Essa chave é complicada e tem a ver com a história posterior do Partido Comunista Brasileiro.
Para ele, a renovação democrática não podia ser um objetivo meramente tático, mas estratégico?
Sim, esse é o grande valor do texto. A esquerda que teria de nascer do texto do Carlos Nelson Coutinho teria de ser uma esquerda radicalmente democrática, que ultrapassasse o paradigma da revolução. Esse é o marco do texto do Carlos Nelson. Isso se verificou? Sabemos que não. Esse sonho dele, essa utopia, essa mudança profunda não se verifica. Não temos lideranças políticas a partir da esquerda naquele contexto que pudesse expressar isso. Não há um partido de esquerda da democracia como valor universal. Ela vira uma referência que se espraia pelos partidos de esquerda e pelos liberais. O Carlos Nelson insinua uma espécie de revolução democrática, que não deixa de ser problemática, tanto que a trajetória dele vai ser essa: depois de sair do PCB, ele vai para o PT e, depois, para o PSOL. Por isso o texto é datado. Tem um grande valor naquela conjuntura, mas o desenrolar da conjuntura política no plano da esquerda não levou a isso. A esquerda desloca o problema da democracia para um lado, como se fosse resolvido, e quer atacar o problema social e da economia com uma determinada visão. E a democracia fica mais como esperança do que como problema. Instalar a democracia, consolidar e conquistá-la é um problemão, ainda mais combinando com os temas sociais e econômicos, como é a América Latina.
O PT incorpora as massas não por meio da democracia, mas por meio do bem-estar econômico?
Exato. É um varguismo de outro tipo. Eu respondo à demanda da mesa, do bem-estar. É um PT Delfim Netto, que quer resolver o problema de quem quer tomar sua cervejinha vendo o jogo do Flamengo. (O Estado de S. Paulo – 21/11/2021)
Luiz Carlos Azedo: A crise da social-democracia
No Brasil, sob forte influência das ideias positivistas, que aqui sempre muito foram heterodoxas, nunca houve uma tradição social-democrata propriamente dita.
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