Luiz Carlos Azedo: A crise da social-democracia

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

O título da coluna nos remete ao começo de tudo. A social-democracia tem sua origem no século 19, como resultado de um movimento político associado aos sindicatos operários e a ideias marxistas. A sua ascensão ao poder se deu em 1910, na Alemanha, após 20 anos de lutas vigorosas, que garantiram conquistas políticas, como o amplo direito de voto, a liberdade de expressão, de imprensa e de organização, e sociais, como a redução do horário de trabalho, contratos coletivos, educação básica, assistência médica e previdência, na onda da segunda revolução industrial.

Com quase 1 milhão de filiados, a Social-Democracia chegou ao poder ao obter 30% dos votos, tornando-se o principal partido do parlamento alemão, com uma liderança que reunia líderes operários e grandes intelectuais. A Revolução Russa de 1905 e a Revolução Mexicana (1910), além do prestígio de socialistas na França e trabalhistas na Inglaterra, transformaram a Segunda Internacional (a primeira teve vida efêmera) no mais vigoroso movimento político do começo do século XX. Mas veio a Primeira Guerra Mundial e isso pôs tudo a perder, porque os social-democratas alemães e trabalhistas apoiaram a guerra

O nacionalismo implodiu a Segunda Internacional. Na Rússia, o líder bolchevique Vladimir Lênin agarrou a bandeira da paz com as duas mãos e tomou o poder, criando a Internacional Comunista. Após a II Guerra Mundial, a social-democracia voltou ao poder em vários países da Europa Ocidental, enquanto os comunistas, apoiados ampliaram seu poder para o chamado Leste europeu, até o colapso da União Soviética, além da China, de Cuba e do Vietnã, onde permanecem no poder.

No Brasil, sob forte influência das ideias positivistas, que aqui sempre foram heterodoxas, nunca houve uma tradição social-democrata propriamente dita. O Partido Comunista, fundado por Astrojildo Pereira em 1922, foi obra de nove anarquistas. O Partido Socialista criado por tenentistas, em apoio a Getúlio Vargas, em 1932, fracassou, por razões óbvias. Somente 1947, sob a liderança de João Mangabeira, viria a ser criado o Partido Socialista Brasileiro, por políticos e intelectuais da chamada Esquerda Democrática.

O PSB se contrapunha aos comunistas, liderados por Luís Carlos Prestes, e aos dois partidos criados por Getúlio Vargas em 1945, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), formado por políticos e líderes ligados aos sindicatos oficiais, e o Partido Social Democrático, constituído por antigos interventores do governo Vargas. Como se vê, nada a ver com a social-democracia, que emergia da II Guerra mundial como uma força política importante em vários países da Europa, que aceitava o capitalismo e atuava para mitigar seus efeitos considerados perversos.

Quem é quem?

A Internacional Socialista defende as liberdades civis, os direitos de propriedade e a democracia representativa, na qual os cidadãos escolhem os rumos do governo por meio de eleições regulares com partidos políticos que competem entre si. Na economia, as teorias do economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946) lhe caíram como uma luva, mas foram progressivamente mitigadas por ideias social-liberais. No Brasil, com a reforma partidária de 1979, antes mesmo da redemocratização, houve uma corrida para representar a social-democracia por aqui.

Quem chegou primeiro foi o trabalhista Leonel Brizola, graças às ligações com o líder socialista português Mario Soares, que patrocinou a entrada do PDT na organização internacional, deixando o ex-governador Miguel Arraes e o PSB a verem navios. Entretanto, após a vitória eleitoral do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Internacional Socialista realizou em São Paulo, em 2003, o seu 22º congresso, o que foi uma espécie de reconhecimento do PT como uma força social-democrata. Recentemente, Lula foi a estrela do Congresso do Partido Socialista-Operário Espanhol, liderado por Pedro Sanchez.

Aquela reunião, porém, fora esvaziada: o alemão, Gerhard Schröder (social-democrata); o britânico, Tony Blair (trabalhista; e o sueco, Göran Persson (social-democrata), todos então no poder, se identificavam muito mais com o PSDB do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Como o Brasil é um país de ideias fora de lugar, como já disse Roberto Schwarz, ao mostrar como as ideias liberais foram solapadas pela realidade de um país escravocrata e socialmente atrasado, o ideário social-democrata, mesmo enviesado, continua sendo disputado por diferentes partidos. De certa forma, as prévias do PSDB, com a disputa entre os governadores João Doria, de São Paulo, e Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, dois políticos liberais, são mais um lance desse tortuoso caminho das ideais políticas no Brasil. (Correio Braziliense – 27/10/2021)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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