Lula é o grande ausente na reunião do Brics

NAS ENTRELINHAS

O Brasil é um dos fundadores do Brics, como a Índia e a África do Sul, mas quem dará as cartas no grupo na reunião de hoje é a China, aliada à Rússia. A propósito, o encontro ocorre à sombra da guerra da Ucrânia

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva será o grande ausente da 16ª Cúpula dos líderes do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que começa hoje, em Kazan, na Rússia. Para o presidente russo Vladimir Putin, o evento tem importância estratégica, porque sinaliza para o mundo que seu isolamento não foi um objetivo alcançado pelo Ocidente, com as sanções econômicas adotadas por Estados Unidos, Inglaterra e União Europeia, por causa da invasão da Ucrânia pelas tropas russas.

Lula foi impedido de participar do encontro em razão de um acidente doméstico — uma queda no banheiro —, no qual bateu com a cabeça, teve que levar cinco pontos. e ainda se encontra sob observação médica. Esse tipo de acidente é muito perigoso e pode provocar lesões celebrais. Entretanto, politicamente, sua ausência é providencial, diante de algumas questões incômodas que serão tratadas nessa reunião, como os pedidos de adesão da Venezuela de Nicolás Maduro; da Nicarágua de Daniel Ortegra; e do Afeganistão dos Talibãs. O Brasil é contra.

O Brasil é um dos fundadores do Brics, como a Índia e a África do Sul, mas quem dará as cartas no grupo na reunião de hoje é a China, aliada à Rússia. O chefe da delegação brasileira é o chanceler Mauro Vieira, porém, Lula participará da cúpula por videoconferência, segundo o Palácio do Planalto. A realização da reunião em Kazan é um desafio ao Ocidente por si mesma, uma vez que o encontro foi montado sob medida para Putin. A cúpula de Kazan contará com os novos integrantes do grupo: Egito, Irã, Emirados Árabes Unidos e Etiópia. A Arábia Saudita ainda não oficializou sua entrada, mas já foi aceita no bloco.

A reunião, inevitavelmente, será à sombra da guerra da Ucrânia. A posição de Lula sobre essa questão é ambígua. “Acho que a Rússia cometeu um erro crasso de invadir o território de outro país. Mas acho que quando um não quer, dois não brigam. Precisamos encontrar a paz”, sustenta. Lula já chegou a dizer que os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, “estão gostando da guerra”.

Lula e Xi Jinping apresentaram um plano de paz para a guerra da Ucrânia no Conselho de Segurança da ONU, mas dificilmente sairá do papel. É rejeitado pelos Estados Unidos e pela União Europeia, além da Ucrânia. O Brasil votou a favor da resolução da Assembleia Geral da ONU sobre a integridade territorial da Ucrânia, em outubro de 2022, e de resolução sobre paz duradoura e fim dos conflitos, em fevereiro de 2023, o que representa um compromisso do governo brasileiro com a paz.

Sul global

A importância do Brics é mais econômica do que política, porém, o grupo ganha um viés ideológico antiocidental em razão da nova “guerra fria” entre os Estados Unidos e a Rússia, no contexto da disputa comercial norte-americana com a China. As economias do Brics suplantam as do G7. O PIB da Alemanha, da Áustria, da Finlândia e da Estônia está encolhendo; a União Europeia vive um momento de estagnação econômica e certa incerteza política. Mais de 30 países desejam ingressar no Brics, entre os quais Azerbaijão, Bolívia, Honduras, Venezuela, Cuba e Turquia. A Rússia veta a entrada dos que apoiam as sanções norte-americana e europeias a sua economia.

O viés antiocidental do encontro de Kazan é um problema para a diplomacia brasileira, mas agrada a uma parcela do governo e, principalmente, a cúpula do PT. A tese de que algumas das instituições da ordem internacional estão voltadas contra os países em desenvolvimento e que o bloco pode ser um caminho para uma reforma ganha força. China e Rússia tiram proveito dessa questão, mas Brasil, Índia e África do Sul também querem manter relações boas com os Estados Unidos e União Europeia.

A Índia é a grande concorrente da China e procura ampliar sua influência na África, onde aumentou de 25 para 43 o número de embaixadas. O país é o quarto maior parceiro comercial africano e a quinta maior fonte de investimento direto estrangeiro na região. A economia indiana deverá crescer 6,5% ao ano entre 2024 e 2028, e tornar-se a terceira maior economia do mundo até 2032, ultrapassando o Japão e a Alemanha.

O Itamaraty tem por tradição uma política flexível, independente e pragmática, porém, o ex-chanceler e assessor especial da Presidência Celso Amorim aposta cada vez mais nas relações com o chamado Sul global, para projetar a liderança de Lula nos países em desenvolvimento. Entretanto, as relações com países da América do Sul, principalmente do Mercosul, não têm sido fáceis para Lula.

Até novembro deste ano, o Brasil também ocupará a liderança rotativa do G20, grupo que reúne as 19 principais economias do mundo, além da União Europeia e da União Africana, que se reunirá no Rio de Janeiro, em novembro. No próximo ano, o Brasil assumirá a presidência do Brics e sediará a 30ª Conferência sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (COP30) em Belém. (Correio Braziliense – 22/10/2024 – https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-lula-e-o-grande-ausente-na-reuniao-do-brics/)

Leia também

A vida e as lutas de Enrico Berlinger

Escute o comentário do historiador Ivan Alves Filho.

Duplos atrasos

Os erros: o uso de celulares nas escolas e a ignorância dos avanços.

‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

Como se reconhece um democrata?

Ele se move pelas sendas complicadas da razão, recusando a manipulação das emoções que políticos e governantes fazem regularmente, sobretudo em períodos eleitorais.

Democracia na América

As nações democráticas de todo o mundo, entre as quais a nossa, não podem dispensar a presença renovada dos Estados Unidos nas suas fileiras.

Informativo

Receba as notícias do Cidadania no seu celular!