Após mergulho das Forças Armadas no redemoinho político, trabalha-se para juntar cacos e superar a desconfiança mútua
Não há nada de original acontecendo com as Forças Armadas brasileiras. Vale lembrar o que escreveu em 1921 o fundador do Exército Vermelho, Leon Trotsky, intelectual que virou comissário da Guerra na revolução bolchevista: “Todos sabemos que um exército não é algo externo a uma sociedade dada, mas reflete todos os seus aspectos, tanto os fracos quanto os fortes”.
Os eventos em torno do 8 de janeiro são parte de um aspecto mais abrangente, o de que indivíduos conduzindo instituições mergulhadas na luta política acabam atuando ao sabor das circunstâncias. É o que vale também para o STF (e o TSE): vendo-se num confronto “existencial”, pois enxergavam (com razão) no bolsonarismo a intenção de destruí-los, tribunais superiores engalfinharam-se na luta política de curtíssimo prazo, ainda que ministros digam que só obedeciam a “princípios jurídicos”.
O que levou ao engajamento político do Exército especialmente a partir de 2018 (ainda antes das eleições) não era o intuito de “tutelar” a Nação. Mas, sim, a noção entre seus principais comandantes de que o tecido social se esgarçava perigosamente em função da corrupção dos dirigentes políticos, da disfuncionalidade e da baixa representatividade do sistema político – sem que os militares tivessem nem sequer o contingente necessário para eventualmente garantir lei e ordem.
Nesse sentido, Jair Bolsonaro não foi uma escolha mas uma circunstância considerada então “fortuita” pelos comandantes militares para estabilizar o País que, na visão deles, estava à mercê de decisões monocráticas do Judiciário e à beira do caos (greves de caminhoneiros e PMS), e vivendo a indignação causada pelos escândalos de corrupção dos governos petistas. Não foi à toa que às vésperas do pleito de 2018 o então chefe de Estado-maior do Exército virou assessor do presidente do STF.
Mas todo mergulho no redemoinho político é incontrolável e o das Forças Armadas trouxe para elas duas graves consequências: a corrosão da disciplina e hierarquia promovida por um ex-capitão que via no caos suas melhores chances políticas. Com danos inevitáveis à própria imagem, pois a credibilidade reconquistada a partir de 1985 baseava-se numa percepção de “neutralidade” institucional das Forças Armadas que o “fortuito” Bolsonaro arrasou.
A tal “volta à normalidade” e “pacificação” se dão agora num ambiente no qual se reitera o respeito às instituições, o que pressupõe o controle civil sobre os militares – mas sem que se enxergue em Lula a autoridade proporcionada por uma efetiva liderança nacional. Trabalha-se para juntar cacos e superar a desconfiança mútua. Vai depender das circunstâncias. (O Estado de S. Paulo – 26/01/2023)