Extrema direita soube criar câmaras de eco onde indivíduos se deixam aprisionar, nutrindo-se das mesmas fontes de notícia
Marx dizia que a História não coloca problemas que não possam ser resolvidos. Certamente, ele se referia a uma síntese de conhecimentos, a uma inteligência coletiva. Sozinho no meu canto, não consigo imaginar, no momento, uma saída para o nó que a revolução digital trouxe para a democracia. Penso nas eleições, em Donald Trump e Jair Bolsonaro, no Brexit, na invasão do Capitólio, no 8 de janeiro no Brasil.
Os passos iniciais da internet trouxeram muita esperança. Lembro-me do primeiro laptop que usei como correspondente da Folha de S.Paulo em Berlim, no início da década de 1990.
Quando voltei ao Brasil, ainda nos anos 1990, criei, como deputado, um site para prestar contas aos eleitores. Foi algo novo, inspirou uma reportagem no jornal Le Monde. Não havia muita gente ligada ainda. Mesmo assim, lembro-me de meu otimismo. Costumava dizer que a internet era um espaço onde o erro e a mentira duravam muito pouco, pois sempre aparecia alguém para corrigir.
Isso tudo foi antes das grandes plataformas, da entrada de bilhões de pessoas nas redes. O panorama, pelo menos aos meus olhos, mudou radicalmente. As grandes empresas exploravam a raiva e a indignação. E elas não faltam no mundo moderno, onde há muito rancor e inveja. Digo isso porque, nos tempos antigos, as pessoas se conformavam com seu status, pois imaginavam que a sociedade era construída a partir de uma determinação divina.
A extrema direita soube criar câmaras de eco onde os indivíduos se deixam aprisionar, nutrindo-se das mesmas fontes de notícia. O politicamente correto iniciou a onda de lacrações, fulminando descuidos de linguagem, pequenos escorregões.
Vivemos hoje sob o signo do ódio. Famílias se separam, amigos rompem amizades, e o tsunami de desinformação torna quase impossível a arte de governar um país.
Como sair dessa? Vejo que, na Finlândia, investem pesadamente na educação, desde o primário, numa tentativa de blindar a sociedade para os problemas que nascem das redes sociais.
Sou favorável a um grande esforço pedagógico. Mas acho pouco. Será preciso uma política para a terceira idade, uma vez que a solidão torna os idosos vulneráveis. Da mesma forma, a inutilidade sentida por muitos em sua vida cotidiana os impulsiona a buscar um sentido que transcenda sua mediocridade. Profissionais e empresas especializadas estão sempre à espreita para inocular dúvidas sobre a ciência, desenhar uma Terra plana, combater vacinas como se fossem mais perigosas que os vírus.
Uma empresa chamada Cambridge Analytica construiu uma tática vitoriosa para convencer as bolhas e, com isso, ajudou no Brexit. O documentário “Extremistas.br”, na Globoplay, entrevista um especialista em manipular notícias e conduzir as pessoas na trilha do ódio.
A esta altura, muitos perguntam sobre a possibilidade de intervir legalmente, de reprimir. As chances de não dar certo são grandes, creio eu. Não me refiro apenas à bandeira da liberdade de expressão, empunhada por todos os interessados no caos. Há também limites nacionais.
O primeiro trabalho de desinformação que denunciei, nas eleições de 2010, era feito nos Estados Unidos. Ninguém se interessou, pois aquilo ainda era muito inverossímil. Na eleição de Trump, a participação dos russos foi um tema constante de denúncia.
Como articular uma saída para esse nó? Na parte final do livro “Os engenheiros do caos”, Giuliano da Empoli sugere muita imaginação e criatividade para enfrentar os artifícios da extrema direita. Mas, creio, será preciso muito mais para desatar o nó dado na democracia: pesquisas, núcleos de estudo, órgãos voltados para a defesa do Estado de Direito. Enfim, não há problemas insolúveis na História, mas a verdade é que estamos ainda muito longe da solução deste que nos trouxe a revolução digital. (O Globo – 23/01/2023)
Fernando Gabeira, jornalista e escritor