NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE
Em um país dividido e com profundos problemas sociais, presidente assume a responsabilidade de reforçar a democracia
Apesar de todas as tensões — e ainda as teremos por um tempo —, a vida do país mudou da água para o vinho desde 30 de outubro, quando foi eleito Luiz Inácio Lula da Silva, que assumirá a Presidência da República neste domingo de Ano-Novo. Faz parte do jogo a má vontade com Lula de formadores de opinião e de integrantes da elite econômica, cuja maioria apoiou e votou no presidente Jair Bolsonaro.
Entretanto, a justa comparação não é com suas expectativas, diante dos quatro anos de retrocesso político, obscurantismo, negacionismo e disparates; é entre um governante cuja reeleição nos levaria para um “regime iliberal”, na linha de Orban (Hungria), Putin (Rússia), Erdogan (Turquia) e outros presidentes autoritários, e o ambiente democrático proporcionado pela simples vitória de Lula, com apoio das forças democráticas do país.
Porque a elite econômica e a maioria da classe média, majoritariamente, apostaram na reeleição de Bolsonaro? Na verdade, apesar das suas grosserias e ignorância em relação aos principais problemas do país, com o ministro Paulo Guedes na Economia e o grupo de generais que o apoia, Bolsonaro representava um projeto de enxugamento do Estado brasileiro por uma via autoritária, para o qual a democracia representativa, principalmente a Constituição de 1988 e o equilíbrio entre os Poderes, seria um obstáculo intransponível.
Estado reinventado
Existe uma corrida mundial para reinventar o Estado, em razão da globalização e das grandes mudanças tecnológicas e nas cadeias produtivas mundiais, nas quais a vocação natural do Brasil é ser um grande produtor de commodities agrícolas e minerais.
Reinventar o Estado numa ordem democrática é complicado, por isso mesmo, os modelos autoritários da China e de Cingapura são novos paradigmas de modernização, principalmente para os países da periferia. Nosso passado não ajuda, porque tivemos dois grandes ciclos de modernização por via autoritária, a ditadura Vargas (1930 a 1945) e o regime militar (1964 a 1985).
As três grandes experiências de modernização por uma via democrática da nossa história republicana foram limitadas e, por isso, não são devidamente valorizadas: o período de vigência do Convênio de Taubaté, entre 1906 e 1929, que levaria os produtores paulistas a apostar na industrialização e, não, no patrimonialismo, como em outros estados; o governo de Juscelino Kubitscheck, que jogou a autoestima do país para cima e nos deixou como legado a indústria automotiva e Brasília; e o governo de Fernando Henrique Cardoso, que estabilizou a moeda com o Plano Real e fez a grande reforma patrimonial do Estado brasileiro.
Quem não valoriza esses períodos da forma devida é a esquerda brasileira, prisioneira de velhos conceitos anti-imperialistas e nacional desenvolvimentistas. Em grande parte, todos os ciclos autoritários que vivemos e os quatro anos de Bolsonaro foram consequências da falta de alternativas democráticas para os novos ciclos de modernização. Na Revolução de 1930, jogamos a democracia fora com a água da bacia; em 1964, JK e Ulysses Guimarães foram empurrados para o lado dos golpistas; a grande massa de insatisfeitos de 2013 apoiou Bolsonaro cinco anos depois.
Síntese política
Por que essas reflexões no dia da posse de Lula, diante da grande festa popular que se realizará e da ultrapassagem dos perigos representados pela continuidade do governo Bolsonaro? Porque, para reinventar o Estado brasileiro, as forças que compõem o novo governo, da esquerda mais tradicional aos setores do Centrão, precisarão se reinventar de alguma forma e produzir uma nova síntese política.
Uma vida normal, com pleno funcionamento das instituições do país e políticas públicas que atendam razoavelmente as necessidades da maioria da população, é suficiente para a tal mudança da água para o vinho. É o que se espera nos primeiros 100 dias de governo, que começa sem a trégua concedida a todos os presidentes que antecederam Lula. Como um Robin Wood, o petista prometeu cobrar mais imposto de renda dos ricos e aumentar a renda dos pobres. Como vivemos num país capitalista, no qual o sistema financeiro e os grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros dão as cartas na economia e sabem se defender, quem pode arcar com as consequências é a classe média.
A única maneira de atrair a classe média e evitar o acirramento do choque de classes desnudado na eleição é o país crescer, gerar mais riqueza e criar melhores condições de ascensão social, pela via da educação e da igualdade de oportunidades. É preciso que as forças que compõem o governo cheguem a um consenso sobre isso, com um programa de governo novo e exequível. O preço da ampliação do gasto social não pode ser uma parceria com o patrimonialismo. Esse é o xis da questão.
Seria Lula um herói Noir? Existe um fascínio pelos escritores norte-americanos que inventaram esse gênero literário, cujos romances foram adaptados em Hollywood para revolucionar o cinema. A atmosfera Noir eram as sombras, o contraste com o negro e o cinza. Falcão Maltês (1941), Pacto de Sangue (1944), À Beira do Abismo (1946), Fúria Sanguinária (1949), Crepúsculo dos Deuses (1950), A Morte num Beijo (1955) e A Marca da Maldade (1958) retrataram os conflitos da vida urbana, a violência policial, o crime organizado e a degeneração política. Seus heróis tinham personalidade dúbia. O ambiente era opressor, perigoso e corrupto, até os homens de bem eram arrastados pela correnteza do mal. O herói Noir tem muitos defeitos, mas não entrega os pontos. É capaz de superar as dificuldades e fazer coisas incomuns.
É assim, como um herói Noir e um país dividido, que Luiz Inácio Lula da Silva escreve o terceiro capítulo de sua biografia presidencial. (Correio Braziliense – 01/01/2023)