A derrota nas urnãs não foi apenas do presidente Jair Bolsonaro. Perderam também os militares que o apoiaram
O choro do presidente Bolsonaro na segunda-feira, na cerimônia de fim de ano das Forças Armadas no Clube Naval de Brasília, significa o fim de uma tentativa golpista que deu errado. Assim como deu errado a manobra do presidente peruano deposto, Pedro Castillo, preso depois de tentar fechar o Congresso e decretar “estado de emergência” no país. A perspectiva de que o mesmo aconteça no Brasil é uma assombração para Bolsonaro, que continua deprimido depois da derrota eleitoral e da frustração de seus instintos autoritários.
Não foi só Bolsonaro o derrotado. Os militares que o apoiaram também foram. Os golpistas tinham tudo teoricamente para ter sucesso: incentivo do presidente; comandantes militares que o apoiavam a ponto de imaginar deixar os cargos antes da posse de Lula, em explícito gesto de rejeição ao presidente eleito; manifestantes nas portas dos quartéis pedindo intervenção militar; parcelas expressivas do empresariado, alguns financiando bloqueios nas estradas e manifestações antidemocráticas; eleição parlamentar vitoriosa, obtendo maioria na Câmara e no Senado; governadores eleitos nos principais estados.
Ao se juntar a Bolsonaro nas manobras golpistas durante todo o governo, com honrosas exceções (demitidas), o grupo militar que o cercava enfraqueceu as Forças Armadas, não teve força para fazer as tropas saírem dos quartéis. A ameaça de intervenção militar, que voltou a pairar sobre a democracia brasileira nos últimos anos, não resistiu às instituições, que, apesar de alguns excessos, puseram em ação o sistema de freios e contrapesos que protege a República.
Ao contrário do que acontece nos governos monárquicos ou autoritários, na República o poder é dividido igualmente entre as funções estatais: Executivo, Legislativo e Judiciário. Isso Bolsonaro nunca entendeu. Sua visão autoritária do poder o levava a revoltar-se contra os limites impostos ao Executivo pelo Legislativo e pelo Judiciário. Quando se viu sem condições de impor suas vontades ao Congresso, entregou aos parlamentares parte expressiva do poder de distribuir verbas, o orçamento secreto, assim como Lula entregou-lhes à sua época o controle de estatais, originando o petrolão.
A vitória de Bolsonaro em 2018 foi resultado de uma conspiração para levar de volta ao poder político os militares, por meio da liderança do deputado do baixo clero que um dia, como capitão, sofreu expulsão branca do Exército por indisciplina e quebra de hierarquia. Quando atribuiu ao general Villas Bôas, então comandante do Exército, a responsabilidade por ter sido eleito presidente da República, Bolsonaro se referia ao tuíte que o militar divulgara na véspera de um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que poderia libertar o ex-presidente Lula e permitir sua candidatura à Presidência.
Não há indicação de que o alerta do general Villas Bôas tenha sido decisivo para o resultado do julgamento no plenário, contra a libertação de Lula. Naquela época, a Operação Lava-Jato ainda era considerada exemplar, e a maioria do Supremo a apoiava. Mas a vitória de Bolsonaro era considerada fundamental para que os militares pudessem retornar “pela porta da frente” da política. O paradoxo de apoiar um “mau soldado”, como o general Ernesto Geisel classificava Bolsonaro, é imaginar que endossar seus arroubos autoritários incondicionalmente teria como contrapartida a respeitabilidade da corporação na ação política.
Ao se transformarem em áulicos de Bolsonaro, os militares que se envolveram em sua aventura antidemocrática rebaixaram-se a seu nível, fazendo com que a corporação, bem-vista pela população, especialmente por ações sociais, de segurança pública e pela atuação da Força de Paz no Haiti, perdesse apoio de boa parte dela. Pesquisas recentes mostraram que metade da população considera que a participação de militares no governo foi prejudicial.
Bolsonaro, ao compensar os militares com benesses e vantagens salariais, reduziu-os a essa dimensão, não se empenhando em fortalecer a corporação em suas funções básicas de defesa do território nacional, com apoio a avanços tecnológicos em projetos de modernização dos equipamentos e pesquisas para transferência de conhecimento.
O hoje presidente eleito Lula, que continua sendo considerado ameaça por boa parte das Forças Armadas, foi paradoxalmente o presidente que mais apoiou o desenvolvimento de projetos militares, como o submarino nuclear ou a compra dos caças Gripen da empresa sueca Saab, com transferência de tecnologia, fechada no governo Dilma. (O Globo – 08/12/2022)