O segundo turno

Todo segundo turno tem um caráter plebiscitário. Esse de 30 de outubro de 2022 não fugirá à regra. De um lado, temos um Presidente da República, Jair Bolsonaro, que flertou com o retrocesso institucional durante todo seu mandato, fazendo até apologia aberta da ditadura militar. De outro lado, é impossível não reconhecer tampouco que o ex-presidente Lula da Silva apresenta, em sua trajetória política, inúmeros posicionamentos contrários à edificação da Democracia no Brasil. Virou as costas tanto ao Colégio Eleitoral em 1985 quanto à Constituição de 1988. Na visão dele, havia 300 picaretas no Congresso Nacional e ponto final. Mais: sua passagem por oito anos à frente do Governo Federal foi pautada por uma sucessão de escândalos administrativos e políticos, como que sintetizados nas palavras mensalão e petrolão. Ao que se saiba, nenhuma autocrítica, nenhum pedido de desculpas foi feito até o momento ao povo brasileiro por Lula da Silva ou pelo petismo.

Vale dizer, a corrupção corrói qualquer tecido social, mina a Democracia. Chegamos a essa situação calamitosa atual por causa também da herança deixada pelo lulopetismo, nunca é demais lembrar. A ascensão da extrema-direita bolsonarista deve muito ao descalabro petista.

Ainda que o voto em Lula da Silva possa significar um mal menor diante do candidato Jair Bolsonaro, esse fato, por si só, não faz do ex-presidente um democrata exemplar. Longe disso. Há mais democratas apoiando a candidatura de Lula da Silva do que aquela de seu adversário Bolsonaro, o que é bem diferente. O voto do campo progressista é muito mais contra Jair Bolsonaro e a favor da Democracia do que pró-Lula.

É quase um voto por exclusão, por falta de opção. O Campo Democrático não soube transformar a sua política em apoio eleitoral, falhando em romper com a lógica da polarização. Foi o que aconteceu com as candidaturas de Simone Tebet e Ciro Gomes. Deu-se então a convergência para Lula da Silva, em 2022, de algumas das aspirações democráticas do povo brasileiro – sem que Lula fosse propriamente um político comprometido com as instituições da Democracia, conforme foi explicitado mais acima. Há exemplos desse tipo em nossa História. Em 1945, não seria muito diferente com Getúlio Vargas. Ditador durante vários anos, Getúlio Vargas – o homem que entregou Olga Benário Prestes aos nazistas e tinha Felinto Müller no comando da repressão -, sentindo soprar os novos ventos no mundo, comprometeu-se com a Democracia. Não fazia muito sentido combater o nazifascismo na Itália e manter uma ditadura dentro do seu próprio país. Vargas sabia que seus dias como ditador estavam contados. Mas, ninguém, em sã consciência, poderia passar um recibo de democrata a Getúlio Vargas. As circunstâncias é que eram outras. E o fato é que conservadores já saudosos da ditadura passaram a fazer oposição a ele. O Vargas que encarnava, bem ou mal, os novos tempos democráticos não era do agrado da direita truculenta.

O lulopetismo capitalizou parte do descontentamento popular com o governo Bolsonaro. Mas esse descontentamento é mais amplo do que o lulopetismo. Além do que, ser contra o Governo Bolsonaro não significa, necessariamente, ser a favor de Lula da Silva. Não compreender isso pode custar caro às oposições. Portanto, nada de cheque em branco a Lula da Silva. Nesse sentido, aqueles que não comungam com as práticas do lulopetismo e decidiram votar no candidato do PT, necessitam, mais do que nunca, fiscalizar as ações do petismo. Precisam dizer, em suma, que sabem quem é Lula e o petismo e conhecem a trajetória para lá de ambígua desse partido e seu chefe.

Seja qual for o resultado das eleições neste segundo turno, permanecer na luta pela reconstrução do Campo Democrático, hoje tão abalado pelo avanço do populismo dito de direita ou dito de esquerda no país, é fundamental. Um velho revolucionário já dizia que os extremos são iguais nos métodos e nas práticas. Os valores históricos do campo progressista só têm a ganhar ao se afastar dessas práticas populistas, que beiram o fascismo, adotando o liberalismo político como uma herança também sua. Quem quiser que se iluda:o inimigo da extrema-direita é o liberalismo, por tudo que ele representa em matéria de conquista civilizatória.

Se o segundo turno der a vitória a Lula da Silva, o que não será nada fácil, o Campo Democrático terá muitas tarefas inadiáveis pela frente. Ir além da conjuntura imediata ou não ficar somente nela. A árvore não pode esconder a floresta, diz o velho ditado. Uma dessas tarefas implica entrar em sintonia com os novos rumos do desenvolvimento das forças produtivas entre nós. Automação, trabalho por conta própria, essa a nova realidade do mundo do trabalho. Ao lado da necessária ampliação da Democracia nos planos institucional e cotidiano, e da defesa da cultura enquanto identidade do nosso povo, eis o que compõe as novas bases de uma política realmente progressista, que atenda aos interesses de fato da população.

Desde os anarquistas, passando pelos socialistas e comunistas, o campo progressista soube armar sua política em cima das mudanças que se verificaram no âmbito do trabalho. Os anarquistas representando o trabalho de corte artesanal, os comunistas a grande indústria, grosso modo. Hoje, há uma espécie de retorno ao trabalho por conta própria, só que com grande montagem tecnológica. O trabalho torna a ser realizado, em parte, em nossas próprias casas – quem tirou tanto o homem quanto a mulher de suas casas foi a Revolução industrial. Temos novamente a oportunidade de interferir mais no conteúdo do processo produtivo, controlando várias de suas etapas.

De outra parte, falar em cultura sem mencionar a extraordinária contribuição de uma contra elite comprometida com as reformas estruturantes de que o país tanto necessita é praticamente impossível. Por contra elite entendemos os que, sem integrar os setores dominantes em matéria de condução econômica, representam uma espécie de vanguarda no plano cultural no sentido amplo, aceitando passar acordos com o movimento popular. Há muitos exemplos disso entre nós, do Cinema Novo à construção de Brasília, da música popular à Editora Civilização Brasileira e desta ao Teatro Opinião e aos artistas plásticos da Semana de 22 em diante. Vários nomes materializaram isso: Oscar Niemeyer, Astrojildo Pereira, Alceu Amoroso Lima, Di Cavalcanti, Portinari, Tarsila do Amaral, Aparecida Azedo, Ênio Silveira, Ferreira Gullar, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, Nelson Pereira dos Santos, Humberto Mauro, Leon Hirszman, Edison Carneiro, Darcy Ribeiro, Milton Santos, Caio Prado Júnior, Ignácio Rangel, Celso Furtado, Josué de Castro, Nise da Silveira, Nelson Werneck Sodré, Luiz Werneck Vianna, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Mário de Andrade, Pixinguinha, Heitor Villa-Lobos, João Gilberto, Ismael Silva e Nei Lopes são alguns deles. Alguns tinham origem popular, outros nem tanto. O que importava era saber para onde ir e não de onde se vinha propriamente.

Também no terreno da Democracia não fomos tão mal assim. Soubemos sair dos impasses do Estado Novo percebendo a importância da aliança com os liberais (e podemos citar o Manifesto aos Mineiros, de 1943) como rompermos com a ditadura militar refazendo a mesma aliança, com o MDB de Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, em 1984-1985.

Mergulhar então nas mutações que atravessam o mundo trabalho, repensar culturalmente a nossa herança, não arredar um milímetro sequer da defesa da Democracia e seus valores. É preciso recuperar isso, retomar o fio da meada, e, paralelamente, ter consciência de que novos desafios se encontram à nossa frente, como a pauta ambiental e aquela dos direitos humanos e da cidadania.

Se tivermos consciência de que precisamos submeter o Estado à sociedade, essa luta será ganha.

Ivan Alves Filho, historiador, documentarista e jornalista, autor de 20 livros em que se destacam Memorial dos Palmares, História Pré-Colonial do Brasil, Brasil, 500 anos em documentos, Velho Chico mineiro, O historiador e o tapeceiro, O caminho do alferes Tiradentes e A saída pela Democracia

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