Marcus André Melo: Bolsonaro e as relações Executivo-Legislativo

A tragédia dos comuns fiscal é resultado de incentivos políticos desalinhados

Jacques Lambert (1901-1991), autor do clássico “Os Dois Brasis” (1953), foi pioneiro no estudo do presidencialismo latino-americano, que caracterizou como “regime de preponderância presidencial”. Argumentou que nele o presidente era muito mais poderoso constitucionalmente que seu congênere americano; desfrutava de amplas prerrogativas (veto parcial, iniciativa exclusiva de leis, amplo poder regulamentador, entre outras), e exercia “leadership sobre o Legislativo”.

“Os projetos de lei apresentados pelo governo têm muito mais possibilidade de transformar-se em leis do que as propostas dos membros do congresso”. (Argumento corroborado empiricamente pelos colegas Fernando Limongi e Argelina Figueiredo).

Sim, o presidente contava também com o poder de nomear, demitir e contratar. Seu argumento não era puramente institucionalista: “O direito de iniciativa em matéria de legislação não é causa de sua preponderância: ao contrário, o êxito de suas iniciativas, sim, é consequência de sua preponderância”.

E concluía augurando a crise atual: “Essa preponderância presidencial tornou-se uma característica permanente, à qual se está tão habituado que, na sua ausência, o regime não consegue funcionar”. É o que estamos observando.

O multipartidarismo, segundo Lambert, obrigava o Executivo a apoiar-se em coalizões, e a impotência das assembleias reforça a preponderância presidencial. “As divisões dos partidos e a indisciplina de seus membros aumentariam as possibilidades de manobra do presidente”. Hoje, o padrão se inverteu. A Constituição de 1988 expandiu significativamente os poderes do Executivo. Lambert não podia antecipar a colossal fragmentação partidária que teria lugar desde os anos 2010.

Mas o mais surpreendente tem sido o enfraquecimento brutal do poder executivo. O protagonismo do Congresso no quadro atual não se confunde com uma revalorização do legislativo. Pelo contrário. Sob o parlamentarismo, as coalizões governativas são responsabilizadas eleitoralmente pelos resultados de decisões de governo. Mas, sob o presidencialismo com Congresso ultrafragmentado e omissão presidencial, gera-se incentivos fiscais perversos. Os partidos membros da coalizão não são responsabilizados e, portanto, não têm incentivos para garantir resultados coletivos. Muitos inclusive integrarão os próximos governos. O resultado é a conhecida tragédia dos comuns.

Lambert argumentava que uma das razões da preponderância presidencial era a “frequência das circunstâncias excepcionais”. Sim, agora vemos o estado de emergência ser invocado no assalto ao Tesouro. O protagonista, no entanto, é o Legislativo. (Folha de S. Paulo – 04/07/2022)

Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)

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