Ocupação de espaços na máquina pública será alvo de críticas
No início de setembro, quando a Câmara se preparava para votar o projeto de lei complementar que reforma o Código Eleitoral, oficiais das Forças Armadas não escondiam a satisfação com um determinado trecho da proposta. Apoiavam, com entusiasmo, a inclusão dos militares entre as carreiras que precisariam passar por uma quarentena antes de ingressar na política.
A proposta, claro, não teria o condão de impedir o uso da imagem das Forças Armadas por candidatos e partidos. Isto era lamentado e já estava na conta, por ser considerado inevitável, mas, pelo menos, a iniciativa legislativa era vista como um instrumento adicional para a missão dos altos comandos de impedir a politização das tropas. “Quando a política entra num quartel por uma porta”, ouvia-se nas conversas sobre o assunto, “a disciplina sai pela outra”.
Exército, Marinha e Aeronáutica passavam por mais um constrangimento público patrocinado pelo presidente Jair Bolsonaro, que, ao lado de apoiadores mais radicais, preparava novos ataques às instituições para o Dia da Independência. Já a Câmara corria contra o tempo.
Deputados tentavam alterar algumas regras eleitorais a tempo de implementá-las no ano que vem: além dos integrantes das Forças Armadas, juízes, membros do Ministério Público, policiais federais, policiais rodoviários, policiais civis, guardas municipais e policiais militares teriam que se desligar das respectivas funções quatro anos antes das eleições, caso decidissem entrar na vida pública. A intenção dos defensores da proposta era impedir que tais profissionais obtivessem vantagens na disputa, preocupação legítima, sobretudo depois do observado nas eleições de 2018.
O próprio Bolsonaro é exemplo a ser mencionado. Sua experiência como oficial do Exército acabou em 1988, quando o comportamento do então capitão acabou por levá-lo para a reserva. No mesmo ano ele se candidatou e foi eleito para o cargo de vereador do Rio de Janeiro. Tomou posse no ano seguinte e logo na sequência, em 1990, elegeu-se deputado federal. Não saiu da Câmara até 2018, quando venceu a disputa pelo Palácio do Planalto.
As bancadas dedicadas aos temas de segurança também cresceram. Segundo um levantamento feito pelo “G1” à época, o número de policiais e militares eleitos para o Legislativo – assembleias estaduais, Câmara e Senado – aumentou de 18 para 73 na comparação com 2014.
Por isso, primeiro, a ideia dos deputados era aplicar uma nova regra já na disputa de 2022. Como não houve acordo, calibrou-se o texto e ficou decidido que a regra passaria a valer para o pleito de 2026. Ainda assim, a proposta foi aprovada pela Câmara e depois não avançou no Senado.
É até possível que os senadores deem um novo impulso a ela mirando as eleições municipais de 2024, aprovando-a até outubro do ano que vem, ou alterem o texto para fazê-la valer no pleito de 2026. No entanto, isso não mudará o fato de que novamente a imagem das Forças Armadas será usada na campanha eleitoral, de forma a confundir o eleitor sobre o papel destinado a uma instituição de Estado que nos últimos anos vem tentando se afastar do polarizado ambiente político. Aliás: já está sendo.
Um movimento veio de Sergio Moro. O ex-juiz da Lava-Jato e ex-ministro da Segurança Pública fez questão de participar da solenidade de filiação do general Carlos Alberto dos Santos Cruz ao Podemos, em novembro, quando o oficial da reserva destacou que não representava as Forças Armadas ao sinalizar disposição de entrar na política. Não ficou claro a qual posto ele, ex-ministro de Bolsonaro assim como Moro, irá concorrer. O que ficou evidente foi o receio de governistas com um racha no eleitorado militar: pouco tempo levou até circular a informação de que Bolsonaro quer ter novamente um general da reserva ocupando a vaga de vice na sua chapa, e o nome do ministro da Defesa, Walter Braga Netto, passou a ser citado como opção.
Uma outra novidade será ver o antecessor de Braga Netto, Fernando Azevedo e Silva, na diretoria-geral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O também general da reserva deixou o governo em março, num momento em que o presidente da República cobrava alinhamento político tanto do auxiliar direto quanto das Forças Armadas. Sua nomeação foi meticulosamente pensada para fazer uma ponte entre a Corte e o universo militar, em meio aos ataques de Bolsonaro contra o Judiciário e as urnas eletrônicas, como se a publicação de seu nome no “Diário Oficial da União” por si só pudesse garantir a estabilidade democrática.
Neste contexto, a competência de Azevedo não é questionada nem por antigos colegas, mas sim, novamente, o emprego de alguém que vestiu a farda por muito tempo – e é relacionado aos militares – para uma missão alheia aos interesses das Forças. Ademais, a presença dele na linha de frente da organização das eleições pode alimentar as críticas ao crescimento exponencial da presença de militares, da ativa e da reserva, em funções estratégicas na máquina pública.
À esquerda, este último ponto já foi definido, inclusive, como algo a ser explorado.
Interlocutores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmam que não basta formular uma norma para regulamentar a entrada de policiais e militares na política. Ou seja, um eventual governo do petista tende a atacar logo o que o partido considera uma militarização da administração pública. “A campanha de 2022 vai ser um suspiro final de um sonho de poder de um segmento que tem, sim, que ter poder, mas subordinado ao papel constitucional que lhe foi definido”, comenta uma fonte. “Vamos ter um governo plural. Isso não quer dizer que não haverá militares em espaços estratégicos, mas não como uma regra”, acrescenta.
Aqueles que acumulam salários, mesmo com respaldo legal, devem ser atingidos. E isso nunca ocorre sem que ocorram turbulências.
De qualquer forma, só em outubro o eleitor definirá qual o perfil do governo irá querer a partir de 2023. Até lá, cabe a cada pré-candidato compreender que seus interesses individuais não devem se sobrepor a instituições de Estado, como as Forças Armadas. (Valor Econômico – 29/12/2021)
Fernando Exman é chefe da redação, em Brasília