Bolsonaro disse no Oriente Médio que a Amazônia não pega fogo porque é uma floresta úmida. E disse tranquilamente, apesar de tantas evidências colhidas por satélites e depoimentos visuais.
Em vez de repetir que Bolsonaro é cínico e mentiroso, continuo tentando entender como essas barbaridades acontecem.
Quando li “Guerra pela eternidade”, de Benjamin R. Teitelbaum, pensei em articular um roteiro de estudo que pudesse explicar para mim fenômenos como a vitória de Trump e Bolsonaro, para mencionar apenas dois nomes.
A impressão que tenho é que a extrema direita, apesar de ter apenas um milionésimo da capacidade de formulação da esquerda, compartilha com ela, ao que me parece, duas ilusões essenciais: que a História tem um sentido e que há atores predestinados a realizá-la. O sentido e os atores não coincidem, uma vez que uma se dedica a impulsionar o rumo da História; outra, a neutralizar sua trajetória materialista.
Steve Bannon manifestou sua simpatia pelos americanos do interior, como se houvesse nas suas convicções e modo de vida grandes qualidades a valorizar; Olavo de Carvalho, por sua vez, admiração por fervorosos grupos religiosos.
O ex-chanceler Ernesto Araújo defendia abertamente uma espécie de recomeço universal em que os valores espirituais prevalecessem e via em Trump a encarnação do herói que conduziria essa batalha.
Essas ilusões sobre o rumo da História acabaram romantizando o homem comum, marginalizado pela globalização e pela modernidade.
Não vou discutir o sentido da História. Mas a romantização do homem comum, “gente como a gente” que diz besteiras sinceras, é muito perigosa. Acaba confundindo o homem comum com o idiota que diz que a pandemia é uma gripezinha e que a Amazônia não queima porque é úmida.
Recentemente, Ernesto Araújo, numa alusão ao filme “Matrix”, disse que Bolsonaro tomou a pílula azul e se tornou base do Centrão. Tomar a pílula azul significa decidir viver com as ilusões do sistema. O ex-chanceler disse ainda que, nas eleições, a maioria tomou a pílula vermelha, o que significa enxergar a realidade e fazer a grande transformação.
Vermelha, Araújo? Por muito menos, os militares em 1964 mandaram queimar o romance “O vermelho e o negro”, de Stendhal.
Isso serve apenas para confirmar a hipótese que inspirou este texto.
Os que viam em Bolsonaro o líder de uma revolução espiritual que sacudiria as bases do materialismo na verdade não tomaram a pílula vermelha, mas sim um poderoso ácido amarelo, um Califórnia Sunshine, e começam a despertar de sua viagem.
Bolsonaro sempre foi um deputado fisiológico, e seus aliados no mundo religioso são vorazes pastores que, só em Angola, retiraram US$ 120 milhões por ano, transferindo-se para a África do Sul.
Bolsonaro designou um deles para gerir essa fortuna na África do Sul, na condição de diplomata brasileiro. Os sul-africanos simplesmente rejeitaram essa indicação.
Não me agrada criticar sonhadores que vislumbram um futuro luminoso, em que o homem não vai mais explorar o homem. O mesmo vale para aqueles que veem a glória nas tradições do passado, livres das amarras de um materialismo brutal.
Quando muito intensas, essas fantasias produzem aberrações como Kim Jong-un ou Bolsonaro.
É apenas muito preocupante ver tanta gente dançando diante do abismo, no momento em que não perderam o contato com a dura realidade. Lutam, sem grande êxito, não para levar a humanidade a uma dessas visões de paraíso, mas para salvá-la dos próprios erros acumulados.
Os seres humanos sempre foram limitados e não se deram conta dos limites dos próprios recursos naturais. As ilusões que levam idiotas ao poder simplesmente agravam seriamente o perigo real: a extinção de todos nós, sonhadores ou modestos realistas. (O Globo – 22/11/2021)
Fernando Gabeira, jornalista