Marcus André Melo: Chile despedaçado

Alienação eleitoral e reforma institucional minaram a estabilidade de um sistema dinástico

Há grande perplexidade sobre a turbulência no Chile, o país mais bem-sucedido economicamente da região e que exibia maior estabilidade. O cenário é desolador. O padrão de competição política vertebrado por duas coalizões de centro-direita e centro-esquerda, deu lugar a um confronto entre outsiders extremistas. Boric, líder estudantil sem experiência que surgiu como candidato independente, lidera coligação com o partido comunista e movimentos. Kast foi candidato independente; agora é líder de partido de perfil pinochetista.

Há duas explicações complementares. A primeira é histórica; a segunda, institucionalista. Tratei da primeira em coluna aqui. Para a segunda, a debacle do sistema deve-se a mudanças na representação política. A primeira refere-se às regras de registro eleitoral. O país adotou há 30 anos o “voto obrigatório, registro voluntário”; não registrados sofriam sanções não triviais caso não votasse, o que criava incentivos para o não registro. A taxa de registro dos jovens despencou de 90,7% para 17,5% entre 1988 e 2011: uma geração inteira alienada das eleições. A reação levou a uma mudança radical, em 2013, para “registro automático, voto facultativo”. Resultado: queda brutal no comparecimento às urnas nas eleições presidenciais de 2013 (49%) e de 2017 (46%); idem, nas legislativas; no plebiscito de 2020 (50%) e nas eleições para a constituinte em 2021 (43%). Há déficit de legitimidade democrática: hiperpolitização por seleção, apenas os mais engajados tendem a votar.

A segunda delas envolve o sistema binomial —modelo só adotado no país— no qual os distritos têm dois representantes; se o candidato no topo da lista de uma coalizão tiver mais que o dobro do da rival, a coalizão leva as duas cadeiras em disputa. Caso contrário, a segunda cadeira vai para a lista rival. O modelo é inclusivo e garantiu que o perdedor permanecesse no jogo legislativo.

O sistema criou incentivos para que se formassem duas coalizões estáveis, que se alternaram no poder. No entanto, em 2015 o novo governo o eliminou. Segundo Gamboa e Morales, o objetivo era resolver problemas na seleção de candidatos em coalizões de centro esquerda cada vez mais amplas (> 5 partidos). Até então as coalizões só poderiam apresentar dois candidatos. Os distritos passaram a ter de três a oito cadeiras na Câmara, e de duas a cinco, no Senado. Candidaturas idem; mas as independentes foram permitidas.

Essas mudanças seriam as causas institucionais da atual fragmentação e radicalização. Mas elas se mesclam a um legado histórico de elementos dinásticos da política chilena. O vencedor será hiperminoritário e a governabilidade estará em risco. (Folha de S. Paulo – 22/11/2021)

Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)

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