Carlos Andreazza: Perversão de Estado

Não pensemos que a recente mensagem antimáscara de Bolsonaro seja mera isca para desviar atenções. Nem sempre é isso ou só isso. Sabe-se que o sujeito tem razões para produzir fumaça. Está acuado pela CPI; pela revelação de que, presidente da República, mobilizara-se — como um lobista, falando ao primeiro-ministro da Índia — para defender os interesses de empresas privadas importadoras de insumos à produção brasileira de cloroquina. E isso enquanto a comissão inicia a etapa de quebra de sigilos.

Razões para que a rede bolsonarista dedique-se ao diversionismo e tente levar a pauta a outro terreno. Exemplo do emprego bem-sucedido dessa tática desviante é haver tomado o último fim de semana o debate sobre se terá sido a motocada blasfema do mito a maior da história da humanidade.

Sim: fumaça. Mas não somente. A mensagem de um presidente é sempre influente. Tanto mais se um populista. Ele sopra o apito. Fala a seus sectários. O recado chega à ponta. Chegou. O disparo antimáscara foi certeiro. A pregação cumpriu o objetivo. Mais tarde, conforme o padrão, Bolsonaro mudaria — ajustaria — a embocadura. É como procede. E então o que era um parecer ultimado — vendido com a gravidade de um decreto — transforma-se num pedido, não impositivo, de estudo ao novo Pazuello, um tal de Queiroga. Repito: o tiro já alcançara a meta, inclusive a de humilhar o ministro da Saúde, um Pazuello que usa máscara.

O ministro da Saúde é — sempre foi — Bolsonaro. E, para Bolsonaro, a máscara compõe um conjunto opressor — é como o bolsonarismo subverte e se apropria da ideia de liberdade.

Bolsonaro prega a vida normal, daí por que minimize — desde o início da peste — a gravidade do vírus. Por isso quis a Copa América. Vida normal. Povo na rua. Por isso aglomera. Uma compreensão que integra a lógica da imunidade de rebanho em que investiu como política de Estado — e a que esteve subordinada a difusão do tratamento precoce. Pela ordem: propagar a cloroquina como proteção contra o vírus, instilar confiança nas pessoas para que fossem às ruas — e para que se contaminassem, sem interromper atividades, até o que seria a imunização coletiva.

Essa projeção explicará o último quadrimestre de 2020, e por que não se cuidou de contratar o maior número de vacinas para o quanto antes. Os celerados pensavam que não seria necessário. Apostou-se na imunidade por contágio e em que, por esse motivo, entraríamos em 2021 com a pandemia em decadência — o Brasil a ser um caso de sucesso para estudo. Essa também sendo a razão por que se deixou cessar o auxílio emergencial em dezembro. Guedes e seus osmar-terras apostaram num crescimento econômico que contemplaria os mais pobres a partir de janeiro — o que ainda não conseguiram seis meses depois.

Sem dúvida que o país se constituiu em caso a ser estudado. O experimento social, que teria Manaus como cobaia, falhou miseravelmente; graças a um governo que, por meio de placebo, operou pela sustentação artificial do vírus entre nós. Acercamo-nos dos 500 mil mortos — e com os sobreviventes pobres ainda mais pobres. O bolsonarismo, porém, não desiste. Não tardou para que degenerasse a perversão em nova variante. E agora temos a teoria conspiratória de que haveria supernotificação de vítimas como forma de desqualificar — de criminalizar — o tratamento precoce.

É sob essa versão que o presidente tem afirmado ser o Brasil um dos países em que menos se morre por Covid-19, graças à cloroquina, mas que isso nos seria omitido pela manipulação dos números. Obra do establishment, dos governadores ditadores e corruptos. Diz Bolsonaro que o tratamento precoce funciona; que não seriam quase 500 mil os ceifados. E faz isso — o presidente da República — valendo-se de um documento fraudado, atribuído ao TCU e inserido no sistema do tribunal por um auditor bolsonarista. Eis a página — de corrupção institucional — em que estamos. Chegou-se mesmo ao ponto em que fanáticos confrontam o TCU com a peça que o TCU afirma ser falsa. Eis a página — de corrupção dos fatos —em que estamos.

É claro que Bolsonaro investirá contra a vacina, apregoando-a — em mentira consciente e criminosa — como experimental. (Um investimento também contra a Anvisa.) É claro que investirá contra o uso de máscara. A guerra artificial que o bolsonarismo trava: a máscara como uma espécie de lockdown individual — a máscara como inimiga imaginária e instrumento de controle social na mão de tiranos à espreita. A mensagem tem apelo popular. Vender normalidade é popular. É o que faz Bolsonaro, o defensor das liberdades.

Repito: ele é um populista, líder sectário. Fala, pois, para parcela específica da sociedade. Mas pode ir novamente além. Porque capta o cansaço das pessoas. Percebe que há mesmo uma queda — um relaxamento — no uso de proteção e se associa à onda. Bolsonaro é um girassol publicitário. Vira-se, orienta-se, para onde está o calor. Tem faro. E, a rigor, explora tendências que ele mesmo ajudou a criar e difundir via zap profundo. Mente e atinge; sendo o desmentido sem efeito.

As pessoas estão cansadas da pandemia e — ante a perspectiva de se vacinar — baixam a guarda; buscam quem lhes confirme os anseios. Bolsonaro é depravado: explora um fastio relativo a uma doença que ele trabalhou para que se alongasse entre nós. (O Globo – 15/06/2021)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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