Democracia na América

As nações democráticas de todo o mundo, entre as quais a nossa, não podem dispensar a presença renovada dos Estados Unidos nas suas fileiras

Tão imperfeita quanto qualquer outra, e com certeza a mais assediada internamente, a democracia norte-americana hoje constitui um privilegiado observatório debruçado sobre o drama das sociedades abertas. Não há mais o sentimento de excepcionalismo de outros tempos nem a retórica dos que celebravam orgulhosamente a invicta “cidade no alto da colina”. À direita, políticos conservadores e até muito conservadores, como Ronald Reagan, deram lugar a outros cuja visão sombria enxerga um país cercado de bárbaros. E a simples presença deles ameaçaria substituir a população autóctone racialmente pura ou, no mínimo, envenenarlhe o sangue.

Para os reacionários de novo tipo, a cidade na colina, antes gloriosamente inexpugnável, agora se vê também ameaçada por “inimigos internos” que tomaram de assalto as instituições e configuraram um singular “Estado profundo”. Aliás, os tentáculos desse Estado invisível aos não iniciados já teriam se espalhado pela sociedade civil, contaminando as artes, as profissões liberais, a política e a imprensa independente. Toda essa linguagem evoca medos e paranoias dos piores regimes do século passado, e não por acaso o termo “fascismo” voltou a ser empregado até por gente insuspeita de inclinação à esquerda.

No entanto, o grosseiro espírito nativista e o apregoado antielitismo convidam-nos antes a descrever o fenômeno como uma espécie de “nacional-populismo” destes tumultuados tempos hipermodernos, sem menosprezar outras tentativas de ajustar palavras e coisas. O fato é que tal nacionalismo populista, oposto ao já passado cosmopolitismo “globalista”, requer o homem forte e o respectivo culto. O “globalismo” de outrora guardava o ingênuo otimismo pelo qual, universalizadas em marcha batida as relações econômicas, mais cedo ou mais tarde a institucionalidade democrática sobreviria como num passe de mágica. O nativismo de agora, particularista e bélico, navega sob o signo da redução da democracia ao seu elemento plebiscitário. Daí a apologia do strongman e o aplauso à sua impaciência com freios e contrapesos da dimensão liberal da democracia.

Democracia iliberal, precisamente, foi o singular nome de batismo dado ao tipo de regime cuja implantação se pretende como resposta aos sobressaltos da época. Nascida em 2014, a fórmula é de autoria do político húngaro Viktor Orbán, tornado surpreendentemente um dos estrategistas da direita populista no xadrez internacional. Convenhamos que, sem desrespeitar as excepcionais tradições da mítica Mitteleuropa, de que faz parte saliente a Hungria, só num mundo de ponta-cabeça alguém como Orbán pode estar presente com destaque inusitado na fala do ex-presidente Donald Trump, como esteve durante o recente debate com a vice-presidente Kamala Harris. De fato, paradoxos à parte, Orbán é a óbvia inspiração de Trump para sua giornata particolarissima, o grande dia de ditador que imagina para si.

O observatório norte-americano, dizíamos, é um ponto avançado em relação à Europa e mesmo ao Brasil. Lá um dos dois grandes partidos nacionais cruzou, com Trump, a linha que separa a disputa constitucionalmente regulada e o desafio aberto à transmissão pacífica de poder – e o que se sabe é que Trump só aceitará uma eventual segunda derrota se, a seu critério, a competição for justa. A transgressão da fronteira constitucional tornou-se possível quando o Partido Republicano perdeu propriamente a sua característica de partido político para se transformar num movimento populista de massas reunido em torno de um culto.

Essa metamorfose, segundo Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, requer uma teoria, e a teoria dos autores é que, no fundo, o Grand Old Party entrincheirou-se na defesa encarniçada de um contingente demográfico prestes a se tornar minoritário. Brancos, cristãos e conservadores do meio rural compõem um núcleo muito coeso, mas com reduzida capacidade expansiva, o que, de resto, explica as muitas derrotas no voto popular nas eleições presidenciais desde 1992. E instituições anacrônicas, como o Colégio Eleitoral, admitem ainda assim uma “tirania da minoria”, o que congela todo e qualquer impulso de mudança dos republicanos e há décadas interrompe a obra comum de aperfeiçoamento incessante da democracia.

O insight de Levitsky e Ziblatt, aqui sintetizado de modo extremo, tem o condão de deixar por ora nas mãos de democratas, independentes e republicanos never trumpers a indispensável tarefa de regeneração institucional, para não mencionar as fraturas sociais que se abriram desde a afirmação da reaganomics e sua sombra longa e incômoda. É bom voltar a ouvir falar de uma América do Norte que valoriza o trabalho, a cultura e as classes médias, e que se recusa a entrar para o heterogêneo, mas ameaçador, clube das autocracias. As nações democráticas de todo o mundo, entre as quais a nossa, não podem dispensar a presença renovada dos Estados Unidos nas suas fileiras. Se porventura tal não ocorrer, o horizonte global – e brasileiro – será o de uma luta defensiva ainda mais dura, prolongada e imprevisível. (O Estado de S. Paulo – 22/09/2024 – https://www.estadao.com.br/opiniao/luiz-sergio-henriques/democracia-na-america/)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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