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NAS ENTRELINHAS

As relações entre o presidente Lula e Nícolas Maduro, que acaba de forjar sua reeleição para continuar no poder na Venezuela, seriam um prato feito para o Barão de Itararé

O provérbio que intitula a coluna tem inspiração bíblica, mas é de autoria do humorista Fernando Apparício de Brinkerhoff Torelly, autodeclarado Barão de Itararé, uma referência à cidade paulista que foi palco de batalhas em 1893 (Revolta da Armada), 1930 (Revolução de 1930) e 1932 (Revolução Constitucionalista). A segunda diz-se que não houve, mas há controvérsias: tropas de Getúlio Vargas e Washington Luiz teriam se enfrentado de verdade.

Gaúcho do Rio Grande, a 317km de Porto Alegre (RS), Torelly nasceu em 29 de janeiro de 1895. Seu pai, João da Silva, era brasileiro, e sua mãe, Maria Amélia, uruguaia. Não tinha completado dois anos quando a mãe, então com 18, tirou a própria vida. Órfão de mãe, foi adotado pelos jesuítas de São Leopoldo. No Colégio Nossa Senhora da Conceição criou seu primeiro jornal de humor, o Capim Seco, escrito à mão.

Aos 17 anos, se matriculou na Escola de Medicina e Farmácia de Porto Alegre, mas não levou a sério a anatomia e virou jornalista. Trabalhou em jornais e revistas de Porto Alegre e interior. Aos 30 anos, foi bater às portas do jornal O Globo, no Rio de Janeiro, a capital do país. Se ofereceu a Irineu Marinho, seu fundador, para fazer qualquer coisa, de “varredor à diretor da redação”. Sua primeira crônica foi publicada na versão matutina do jornal, em 10 de agosto de 1925.

Com a morte de Irineu Marinho, Torelly migrou para as páginas do jornal A Manhã, de Mário Rodrigues (1885-1930), pai dos jornalistas Mário Filho (1908-1966) e Nelson Rodrigues (1912-1980). Batizada de Amanhã Tem Mais…, a coluna diária fez enorme sucesso. Tanto que resolveu criar seu próprio jornal, o semanário A Manha, que circulou de 1927 até 1959. Morreu no dia 27 de novembro de 1971, aos 76 anos, em Laranjeiras, na Zona Sul do Rio, de “arteriosclerose cerebral, seguida de coma diabético”.

As relações entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente da Venezuela, Nícolas Maduro, que acaba de forjar sua reeleição para continuar no poder por mais seis anos, seriam um prato feito para o Barão de Itararé. A Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo, porém, sua população vive na miséria. As declarações atrapalhadas de Lula sobre a crise política no vizinho e seu aliado tóxico seriam motivos de piadas. Alimentariam aforismos, provérbios e trocadilhos de Torelly. Diria que o ditador venezuelano não cairá de maduro.

Labirinto

Lula está num labirinto diplomático, como Teseu da mitologia grega diante do Minotauro. Desde que a cúpula petista decidiu reconhecer a vitória de Maduro, a crise da Venezuela transformou a política externa num divisor de águas da política interna, não mais com a extrema direita, porém, entre o governo Lula e o chamado “centro democrático”.

Pode-se imaginar que a questão não tem importância porque o povo está preocupado com as agruras do dia a dia. Ou os políticos com as emendas ao Orçamento da União. Entretanto, para a opinião pública, Lula contemporiza com Maduro. Deixasse o Itamaraty seguir o roteiro da nossa diplomacia tradicional, independente e pragmática, não haveria tanta polêmica. Entretanto, falaram mais alto os laços ideológicos e a solidariedade pessoal quando estava preso.

Na diplomacia, as palavras são escolhidas com cuidado, mais ainda as ambíguas. De improviso, Lula disse três besteiras que o colocaram numa saia justa: que a situação da Venezuela era normal, quando a oposição estava sendo duramente reprimida; que Edmundo Gonzales deveria recorrer à Justiça, caso sua vitória não fosse reconhecida por Maduro; e que deveria haver um acordo para a realização de novas eleições ou formação de um governo de coalizão, o que nem Maduro nem a oposição aceitam.

Uma decisão ambígua de Lula abriu a porta do labirinto: aguardar a divulgação das atas de votação das eleições, o que Maduro se recusa a fazer, porque perdeu a disputa de lavada. O que o parecia ser uma manobra para ganhar tempo e reconhecer a vitória de Maduro, virou tábua de salvação para Lula, porque as atas verdadeiras nunca aparecerão. Isso abre a possibilidade de um rompimento político pessoal, mas não parece ser essa a determinação de Lula.

A questão central é subestimar a centralidade da democracia na definição de regime bolivariano, que Lula já chamou de “democracia relativa” e, agora, diz que é um regime “desagradável”. Grosso modo, desde a chegada ao poder de Hugo Chávez, o governo venezuelano tem um viés bonapartista, por se colocar acima das classes e ser sustentado por militares, embora tenha gozado inicialmente de grande apoio popular.

Com Maduro, a Venezuela derivou para um regime “iliberal”, no qual as eleições presidenciais legitimavam seu autoritarismo; sem isso, agora, se torna uma ditadura aberta, com características fascistas, porque não respeita a vontade das urnas e recorre ao terror de Estado para se manter no poder, com sequestros, prisões e assassinatos. Mais ou menos o mesmo caminho da Nicarágua, que expulsou o embaixador brasileiro e, ontem, proibiu de existir cerca de 1.500 organizações não-governamentais existentes no país.

Tivesse deixado o caso por conta do Itamaraty, haveria uma saída diplomática para o Brasil sem grande desgaste político interno. Agora, para evitá-lo, Lula precisa romper com Maduro. Mas “quem não muda de caminho é trem”, diria o Barão de Itararé. (Correio Braziliense – 20/08/2024)

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