NAS ENTRELINHAS
A nostalgia do passado é um fenômeno muito amplo, que afeta a extrema direita e a extrema-esquerda, os fundamentalistas cristãos e os marxistas ortodoxos
O professor Mark Lilla é especialista em história intelectual, principalmente do pensamento político e religioso do Ocidente. Desde 2007, leciona Humanidades na Universidade de Columbia e colabora, regularmente, para o “New York Review of Books” e o “New York Times”. É autor, entre outros livros, de “A mente imprudente – Os intelectuais na atividade política”, que traz um perfil de pensadores que fecharam os olhos ao autoritarismo, à brutalidade e ao terrorismo de Estado; e “A mente naufragada – Sobre o espírito reacionário”, que apresenta o reacionário não como um conservador, mas como uma figura tão radical e moderna quanto o revolucionário.
Em 2016, Lilla criticou duramente o Partido Democrata ao analisar a vitória de Donald Trump, na qual questionou a fixação democrata pela questão da diversidade, pois o partido tornara-se um mero porta-voz dos grupos minoritários que não conversavam entre si. Na época, destacou que Bill Clinton e Barack Obama fizeram bons governos, mas isso não bastou para responder aos anseios e inquietações da maioria dos eleitores norte-americanos, diante de um processo inexorável de mudanças que gera muitas incertezas sobre o futuro individual.
É aí que os progressistas, focados nos direitos das minorias, e os liberais, cujas bandeiras já não dão respostas aos novos problemas, cederam espaço para o saudosismo de um passado imaginário. É um fenômeno que aparece com muita força na Europa e na América Latina. Aqui no Brasil, também. Hoje, por exemplo, teremos um grande encontro da extrema direita em Balneário Camboriú (SC), com a presença do presidente da Argentina, Jair Milei, e do ex-presidente Jair Bolsonaro. Lilla examina esse fenômeno desde a eleição de Trump.
Há dois tipos de política identitária: a defesa de direitos de afrodescendentes, mulheres e gays, que lutam por igualdade, cidadania, solidariedade e reparação histórica; e, desde os anos de 1980, a política obcecada pela identidade pessoal e o sucesso individual, na qual cada um se diferencia dos outros.
A primeira dizia “somos todos iguais e queremos ser tratados com igualdade”, ressalta Lilla. “Já essa segunda política identitária se baseia na afirmação da diferença e na exigência de respeito à singularidade. Ninguém pode falar em nome de ninguém. Isso jogou as pessoas umas contra as outras”, destaca. Foi aí que a extrema-direita apostou suas fichas.
Na crítica aos democratas, Lilla sugeriu que a esquerda deixasse de lado o liberalismo identitário e buscasse a unidade na especificidade das minorias. Foi mais ou menos o que levou o atual presidente norte-americano Joe Biden à apertada vitória contra Trump, anos atrás. Sua reeleição, porém, agora está ameaçada pelo próprio derrotado.
A política norte-americana trafega numa montanha russa. A economia vai bem, mas sua narrativa e desempenho pessoal ainda não convenceram a maioria. Hoje, a maioria só se interessa pelo que os afeta pessoalmente e não vê a necessidade de se engajar numa luta comum com outras pessoas, para melhorar de vida. A maioria dos jovens, por exemplo, já não se interessa por quase tudo – política, economia, raça, classes sociais – como antes acontecia.
Nostalgias políticas
A nostalgia do passado é um fenômeno muito amplo, que afeta a extrema direita e a extrema esquerda, os fundamentalistas cristãos e os marxistas ortodoxos. Lilla chama esse tipo de visão de “mente naufragada” porque subverte a ideia de que o tempo é como um rio cujas águas não voltam atrás. Segundo Lilla, houve um desastre no tempo, uma ruptura na história, que deixou as pessoas à margem, enquanto o tempo continuou passando. “Eles acham que não fazem mais parte do que acontece. E essa mentalidade está moldando grande parte de nossa política: uma sensação de deslocamento, de deslocamento histórico acrescentando a outros tipos de deslocamento: econômico, político e cultural”. A política passa a sensação de que algo deu muito errado no tempo.
Vem desse naufrágio o pensamento reacionário. Estudou-se muito as revoluções, mas pouco a Reação, cuja origem como conceito político também é a Revolução Francesa. Karl Marx, por exemplo, em sua vasta obra, somente dedicou uma delas ao fenômeno: O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Isso explica um pouco a dificuldade que a esquerda tem de compreender o que está acontecendo. Não consegue distinguir o pensamento conservador do reacionário, o que ajuda a extrema direita a capturar o centro. São maneiras diferentes de encarar a história. O conservador clássico acha que a história e a sociedade têm prioridade sobre o indivíduo.
Para um liberal, indivíduos têm direitos que prevalecem sobre a tradição ou as reivindicações da sociedade, e essas reivindicações são limitadas por nossos direitos. Os conservadores acreditam no oposto. Entretanto, para eles é importante manter uma continuidade histórica, o que significa não haver uma ruptura radical, mas também reconhecer que as coisas sempre mudam e devem mudar. Então um conservador é mais flexível do que um reacionário e às vezes até mais flexível do que um liberal. Jogá-los nos braços do reacionarismo talvez seja hoje o maior erro da esquerda, não só a brasileira.
Inclusive os reacionários modernos podem ser “revolucionários” no sentido de que querem voltar a um passado idealizado, no nosso caso, o regime militar, ou criar um futuro igual ao passado, a ordem “iliberal” da ditadura da maioria. Desde a Revolução Francesa, o “revolucionário” é movido pela esperança. Segundo Lilla, acredita que o futuro vai ser melhor do que o presente e que ainda não nos tornamos o que devemos ser. Já o reacionário acredita que não somos mais o que somos, nossa verdadeira natureza ficou no passado idealizado. (Correio Braziliense – 07/07/2024)