O evento mostrou que o Brasil continua capaz de fazer cinema de alta qualidade; também ao perceber que está rompido o monopólio do cinema brasileiro como produto das áreas ricas do país
Na semana passada, Recife foi a capital do cinema brasileiro, com a realização do 27º Festival CinePE. Quem esteve presente recebeu injeção de deleite estético, de consciência social e de otimismo com o Brasil. Otimismo ao perceber a resiliência de nossa comunidade cinematográfica: apesar de dois anos de pandemia, depois de quatro de um governo insensível às artes, o festival mostrou que o Brasil continua capaz de fazer cinema de alta qualidade; também ao perceber que está rompido o monopólio do cinema brasileiro como produto das áreas ricas do país. Os belos filmes, com qualidade de roteiro e técnica, feitos em pequenas cidades do interior, demonstram que, apesar da desigualdade social, o Brasil é um país integrado geograficamente, com pobreza e riqueza em cada cidade. Foi entusiasmante ver os jovens de pequenas cidades mobilizando recursos financeiros, técnicos, equipamentos, atores e roteiristas locais para produzirem obras de alta qualidade.
Deleite ao assistir o longa metragem Ainda Somos os Mesmos (RS), dirigido por Paulo Nascimento. Filmado quase todo em um casarão representando a Embaixada da Argentina, em Santiago do Chile, o filme mostra a tensão de centenas de brasileiros exilados, em setembro de 1973, dentro da casa, com seus dramas, necessidades e medo de invasão pelos fanáticos militares do exército pinochetista que os cercava. Uma história real tratada com a máxima competência cinematográfica, digna dos maiores diretores que fazem filmes de suspense com conteúdo político, no nível de Costa Gravas. Os atores Lucas Zaffari, Carol Castro e Edson Celulari têm desempenhos perfeitos. O filme consegue o propósito maior do cinema: durante 90 minutos arranca o espectador de viver sua vida e o faz sentir as emoções representadas por atores em um ambiente, um momento e uma história diferentes. Ainda mais, sair do cinema pensando no que o filme representou.
O Agreste, com fotografia límpida, retrata nos tempos de hoje a geografia e a sociologia do filme Vidas Secas, de 60 anos atrás, com uma história de Romeu e Julieta, atual. Um roteiro envolvente do início até o surpreendente final. Sérgio Roizenblit, Gustavo Maximiliano e Viviane Rodrigues, mostram a qualidade de nossos produtores e diretores. Os diálogos são cativantes na poesia e no linguajar regional, acompanhado todo o tempo pelo canto discreto de pássaros que parecem testemunhar a história. Aury Porto, Badu Morais, Luci Pereira e Mohana Uchôa desempenham seus papeis como gente daquele tempo e lugar.
Surpreendente o documentário em longa-metragem “Ijó Dudu, memórias da dança negra na Bahia” (BA) sobre a dança africana, se afirmando no mundo acadêmico como manifestação estética universal a partir de Salvador. O conhecido bailarino e promotor de arte José Carlos Arandiba, mais conhecido como Zebrinha, conduz um filme de entrevistas com os protagonistas da história da dança negra na Bahia nos anos 1960 e 1970. O roteiro agarra o espectador graças à qualidade das falas, à força das lutas e à beleza da dança. Um filme histórico que precisará ser assistido especialmente pelos jovens.
Entre as sessões, foi possível debater com diretores, atores e fotógrafos sobre a estética dos filmes, as razões das opções adotadas e a superação das dificuldades de suas realizações. Debateu-se também o financiamento e incentivos ao cinema com renomados economistas, como Décio Padilha e Sergio C. Buarque, e o papel e potencial do empreendedorismo, com jovens empresários, como Cícero Aragon, Arthur Covatti e Victor Hill.
Desse intercâmbio, aprendemos como reunir governo estadual, com a presença da governadora Raquel Lyra se comprometendo com o próximo festival; a prefeitura de Recife, com o apoio do prefeito João Campos; o governo federal graças ao Ministério da Cultura; e o apoio de diversas empresas privadas, como Itaú, Adepe, Copergás, Suape, Rodoprima. Ainda mais, coube no 27º CinePE homenagear o ator Caio Blat e o casal patrono do moderno cinema brasileiro: Lucy e Luiz Carlos Barreto.
Tudo isso seria impossível sem a dedicação, há quase 30 anos, de Alfredo e Sandra Bertini, ao ponto de a filha Patrícia dizer que sentia o CinePE como seu irmão. Felizmente, o Brasil tem pessoas como esses pernambucanos capazes de executar de forma sustentável um festival de cinema com competência executiva, compromisso artístico e carinho familiar. Por isso, o Festival CinePE poderia ser chamado de Festival Bertini. (Correio Braziliense – 19/09/2023)
Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)