O perigo de uma virada política a partir do medo dos eleitores é uma possibilidade. É difícil que a mortandade cotidiana comova grande parte dos políticos brasileiros
Desde quando voltei do exílio, observei a violência urbana no Brasil. Comissões de direitos humanos, experiência in loco, reportagens — tudo isso me dá um sabor de fracasso na política de segurança pública na redemocratização.
Essa chacina no Guarujá, que já levou 16 vidas, é tratada como um fato histórico em São Paulo. Aqui no Rio, quando ainda contavam os mortos por lá, dez pessoas tombavam na Vila Cruzeiro. Ações policiais com grande número de mortos tornaram-se um fato cotidiano, foram naturalizadas.
Não há dúvida de que políticos conservadores no poder estimulam essa política, cuja eficácia se mede pela quantidade de corpos estendidos no chão. Infelizmente, a polícia baiana, comandada por um governo de esquerda, mata com a mesma intensidade de todas as outras.
Por que preferimos a força bruta à inteligência e às informações de qualidade como base das ações policiais? Por que somos incapazes de prever certos acontecimentos que estão diante de nós? Fiz duas reportagens — uma em Angra dos Reis, outra em Paraty — para mostrar como o tráfico armado se desloca para cidades turísticas. O que acontece no Guarujá é apenas a confirmação dessa tese. Não há estratégia de segurança diante de mudanças sociais tão evidentes.
A escolha da força bruta e também da tortura para obter informações é mais barata. Temos dificuldade em admitir que segurança custa caro, que é preciso investir em equipamento, formação. E, quando esse equipamento surge, como as câmeras nos uniformes policiais, Cláudio Castro e Tarcísio de Freitas boicotam. Por quê?
Essa é outra importante questão. O fracasso de uma política democrática e civilizada abre caminho para soluções violentas. Elas agradam a uma parte do povo. Vale a pena dar uma olhada em El Salvador. Nayib Bukele conquistou 80% de popularidade com uma política de detenção em massa, assassinatos e torturas. O índice de presos em El Salvador é o maior do mundo. Bukele se declara um ditador cool, descolado, e tem mais de 6 milhões de seguidores mundiais no TikTok. Sua influência se estende a Honduras, onde uma presidente de esquerda, Xiomara Castro, pretende seguir o mesmo caminho ditatorial.
O Brasil não é El Salvador. O problema é o perigo de caminhar para lá. A violência não se limita aos estados do Rio e de São Paulo. Cresceu no Norte e Nordeste de forma assustadora. Cobri uma mortandade num presídio de Manaus produzida por facções locais. Visitei bairros pobres em Fortaleza dominados também por um grupo nativo, com os mesmos métodos das organizações do Sudeste. A existência de uma poderosa rota de drogas abriu lugar para os que vieram e os que surgiram por lá. Em Fortaleza, a organização criminosa parece ter nascido de uma torcida de futebol.
Todos esses fatos são conhecidos e nos chegam a conta-gotas. Mas, se olharmos o conjunto, veremos que o perigo de uma virada política a partir do medo dos eleitores é uma possibilidade. É difícil que a mortandade cotidiana comova grande parte dos políticos brasileiros. Mas, se perceberem que a própria democracia está em perigo, talvez se movam.
No momento, o banho de sangue ganha novos cenários, e há um silêncio pesado. Não se discute, não se propõe, exceto na bancada da bala, cujo nome expressa uma concepção de segurança pública em estilo salvadorenho. Em El Salvador, nenhum problema de fundo foi resolvido, como educação e pobreza; no entanto Bukele tem forte apoio nos bairros periféricos.
É fundamental compreender como morrem as democracias. O fracasso em políticas de segurança pública é uma contribuição de alguns países pobres para a teoria. Não sei se apenas o fracasso, mas também a indiferença das elites políticas. (O Globo – 07/08/2023)
Fernando Gabeira, jornalista e escritor