Luiz Carlos Azedo: Com R$ 2,1 bi em emendas, governo destrava reforma

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Foram liberados recursos do Orçamento da União para a execução de emendas de bancadas, a maior parte no Ministério da Saúde

Depois de muitas negociações, que demandam ainda um ajuste final no relatório do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), o governo conseguiu destravar a votação da reforma tributária, que deve começar hoje. Foram liberados R$ 2,1 bilhões do Orçamento da União para a execução de emendas de bancadas, a maior parte no Ministério da Saúde, a pasta que era cobiçada pelo Centrão nas negociações com o Palácio do Planalto. Ao mesmo tempo em que mandou liberar os recursos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva saiu em defesa da ministra Nísia Trindade, que permanecerá à frente da pasta, apesar das especulações de que sua cabeça seria uma moeda de troca na aprovação da reforma.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), se empenhou pessoalmente nas articulações para demover resistências. Esteve em São Paulo e no Rio de Janeiro para conversar com os governadores Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Cláudio Castro (PL), que haviam engrossado a resistência à reforma, liderada pelo governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil). O resultado dessa movimentação foi o encontro do ministro Fernando Haddad com o governador paulista, no Ministério da Fazenda. Ambos posaram para foto depois da conversa, o que sinalizou para o mercado que a reforma desceria do telhado.

Ao sair do encontro, Tarcísio disse que concorda com 95% da proposta e não será obstáculo à aprovação. Ele desejava criar uma câmara de compensação para mitigar a centralização da arrecadação. Haddad também negociou com o governador fluminense, com quem conversou por telefone. Depois dessa ligação, Castro anunciou que havia endossado a proposta de São Paulo, mas que apoiaria a reforma tributária mesmo que essa reivindicação não fosse aceita.

Ontem, a Câmara derrubou um pedido de retirada de pauta do projeto apresentado pelo Novo. Lira pretende pôr em votação o conteúdo da reforma hoje à noite. Espera-se que até lá haja um acordo sobre o papel e a composição do chamado Conselho Federativo, órgão que teria a função de arrecadar e repassar os recursos aos entes federados.

O presidente da Câmara, com suas declarações públicas, pôs um ponto final nas suspeitas de que fazia jogo duplo nas negociações. Segundo disse, o objetivo das negociações é chegar a um texto que garanta mais governança, transparência e tecnicidade ao Conselho.

“Erra quem tenta politizar a reforma tributária. É uma pauta do Brasil. Precisamos de um texto neutro, que não aumente a carga”, afirmou.

Na noite de ontem, já havia uma mudança significativa no posicionamento das bancadas do Centrão, principalmente do PP e do União Brasil. A mais significativa, porém, foi a da bancada do PL, que havia fechado questão contra a reforma. No final da tarde, o líder da legenda na Câmara, Altineu Côrtes (RJ), anunciou que liberaria os deputados. Antes, ele havia estado com o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, no Palácio do Planalto. Nos bastidores, Tarcísio trabalhou para quebrar as resistências do ex-presidente Jair Bolsonaro, que é contra a reforma. Formalmente, o PL também é.

Polêmica do Carf

Outro assunto cabeludo é o voto de qualidade a favor da União no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf). Com ele, o governo pode desempatar decisões que somam R$ 70 bilhões, somente neste ano, em causas milionárias. A quantidade de processos parados à espera de julgamento no Carf já superou a marca de R$ 1 trilhão.

Esse estoque é consequência da greve de auditores fiscais da Receita Federal e da pandemia. Há processos que aguardam decisão desde 2011. O Carf é o responsável por julgar casos em que o contribuinte não concorda com autuações tributárias, de pessoas físicas a multinacionais.

Durante a pandemia da Covid-19, o Conselho impôs um teto de R$ 36 milhões para os casos que foram levados a julgamento, que ocorriam de maneira virtual. Esse limite foi reduzido em abril. Simultaneamente, iniciou-se a mobilização de auditores fiscais pela regulamentação do bônus de eficiência, que tem levado ao adiamento das sessões de julgamento do colegiado por falta de quórum.

A média histórica de julgamentos parados no Carf era de R$ 600 bilhões — agora, soma R$ 1,053 trilhão. Composto por 180 conselheiros (90 representantes dos contribuintes e 90 da Receita), quando há empate a decisão favorece o contribuinte. O governo que ter o voto de Minerva, e inverter a situação. (Correio Braziliense – 06/07/2023)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎
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