Luiz Carlos Azedo: Investigado pela PF, Do Val é elo perdido dos atos golpistas

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Bolsonarista, senador do Podemos do Espírito Santo difunde teorias conspiratórias sobre o 8 de janeiro e cultiva uma imagem de super-herói de histórias em quadrinhos

A Polícia Federal realizou buscas em endereços ligados ao senador Marcos do Val (Podemos-ES), ontem, inclusive no seu gabinete do Senado. A operação não surpreendeu o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que foi avisado pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), responsável pelo inquérito que investiga os atos golpistas de 8 de janeiro. Em Brasília e no Espírito Santo, foram apreendidos documentos, computadores, pen drives e, também, o celular do senador. Como membro da Comissão Mista de Controle dos Serviços de Inteligência, Do Val teve acesso e divulgou informações de documentos sigilosos do SNI, com o objetivo de incriminar autoridades do novo governo nos atos de vandalismo.

Um dos protagonistas da convocação da CPMI dos Atos Golpistas, Do Val foi para o olho do furacão do inquérito quando divulgou, nas suas redes sociais e em entrevistas coletivas, que teria se reunido com o ex-presidente Jair Bolsonaro e o ex-deputado Daniel Silveira para tratar de uma operação de inteligência na qual gravaria uma conversa comprometedora com o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes. O objetivo seria afastá-lo das funções.

Como diria o Conselheiro Acácio, excêntrico personagem do escritor português Eça de Queiroz no romance Primo Basílio, “as consequências vêm depois”. Os fatos citados pelo senador naquela entrevista, obviamente, teriam de ser investigados pela Polícia Federal: primeiro, a troca de mensagens por celular entre Do Val e Silveira; segundo, o encontro com Bolsonaro e Silveira; terceiro, o suposto encontro de Do Val com o ministro Moraes, na sede do próprio Supremo, no qual teria relatado as intenções golpistas.

Parecia uma denúncia contra Bolsonaro, envolvendo-o diretamente no caso da minuta de intervenção encontrada em poder do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. Depois, Do Val mudou a versão, disse que participara de uma suposta operação de inteligência. A história foi contada de muitas maneiras pelo senador. Do Val é uma espécie de elo perdido no enredo dos atos de vandalismo praticados no dia da diplomação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 18 de dezembro, e a depredação dos palácios da Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro. O fato de Bolsonaro não reconhecer a vitória de Lula e confirmar o encontro só reforçou esse entendimento.

Uma das características do fascismo é a obsessão por atribuir todos os eventos da história a conluios secretos. Bolsonarista, Do Val difunde teorias conspiratórias sobre o 8 de janeiro e cultiva uma imagem de super-herói de histórias em quadrinhos. Criado por um mestre japonês de Aikido, arte marcial na qual é faixa-preta 2º dan, depois de prestar serviço militar no Exército, no início dos anos 1990, fundou a CATI, empresa de segurança voltada ao treinamento avançado de policiais para emprego proporcional da força. Por meio dessa empresa, ministrou cursos e palestras e se tornou instrutor de unidades da polícia de Dallas, Texas, nos EUA, as famosas SWAT, no final dos anos 1990. Isso lhe deu prestígio entre os capixabas.

Selva

Ex-superintendente da Polícia Federal em Roraima, no Maranhão e no Amazonas, o delegado Alexandre Saraiva participou, ontem, de uma roda de conversa na Universidade de Brasília (UnB) sobre crimes ambientais, na qual apresentou seu livro Selva: Madeireiros, garimpeiros e corruptos na Amazônia sem lei (Intrínsica). Saraiva liderou a operação responsável pela maior apreensão de madeira ilegal da história do país; depois, apresentou ao STF uma notícia-crime contra o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (PL-SP), hoje deputado federal.

Saraiva acusou Salles de obstruir a fiscalização. O ministro havia questionado o trabalho policial e exigido que a carga de 226 mil m3 fosse devolvida aos madeireiros investigados. A resistência de Saraiva resultou na sua exoneração do cargo de superintendente regional. Ele também passou a receber mais ameaças de morte. Em Selva: Madeireiros, garimpeiros e corruptos na Amazônia sem lei, em coautoria com Manoela Sawitzki, Saraiva relata os bastidores de sua demissão e oferece uma radiografia da cadeia de relações escusas que sustentam o crime ambiental no país, com suas ramificações na política, na polícia e no Judiciário.

Saraiva é formado em direito pela Universidade Federal Fluminense, com doutorado em ciências do ambiente e sustentabilidade na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas. Delegado da Polícia Federal há 19 anos, coordenou as operações Euterpe (RJ-2006), a Arquimedes (AM-2017) e a Handroanthus (PA-2020) — esta última responsável pela maior apreensão de madeira ilegal da história do Brasil. (Correio Braziliense – 16/06/2023)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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