Luiz Carlos Azedo: A visão de Dino para um “programa mínimo” de Lula

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

Flávio Dino se tornou uma estrela do governo Lula, mas está no epicentro do estresse de relacionamento entre o presidente da República e o presidente da Câmara, Arthur Lira

O ministro da Justiça, Flávio Dino, ex-governador e senador eleito, que se diz católico apostólico romano, recorre aos ensinamentos do líder comunista George Dimitroff para explicar a necessidade de o governo Lula chegar a um acordo com o Congresso para governar. “Estamos na defensiva, houve um avanço do fascismo no mundo e o bolsonarismo faz parte disso, aqui no Brasil”. Mesmo que Jair Bolsonaro venha a ser considerado inelegível, segundo ele, o “bolsonarismo continuará existindo”. Seria essa, na sua opinião, a grande ameaça enfrentada pelo governo Lula, que justifica a “adoção de um programa mínimo e não um programa máximo”, como a esquerda do próprio governo gostaria.

Ex-juiz criminal em Brasília, Flávio Dino derrotou o clã do ex-presidente José Sarney para ser governador do Maranhão por dois mandatos, eleito pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Na última eleição, quando concorreu ao Senado, trocou de legenda e passou a fazer parte do PSB. Já foi convocado uma dezena de vezes para depor em comissões do Senado e da Câmara. Seus embates viralizaram nas redes sociais, um deles com o senador Marcos Do Val (Podemos-ES), seu principal desafeto. É acusado pela oposição de ter se omitido quanto à segurança da Esplanada dos Ministérios no dia 8 de janeiro passado, quando o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) foram invadidos e depredados por vândalos de extrema-direita.

“Houve uma tentativa de golpe de Estado, mas querem transformar a vítima em réu”, argumenta. O ministro da Justiça já foi alvo de ameaças de morte e tentativas de agressão, em várias situações, uma das quais mum shopping de Brasília, quando estava com a mulher e dois filhos. “Ando com segurança 24 horas por dia, porque sempre sou atacado por bolsonaristas, mas não tenho medo do fascismo, vou cumprir minha missão”, garante. Seus embates estão tendo o efeito de aumentar sua popularidade, principalmente entre os jovens, o que o torna um potencial candidato à Presidência. Ele descarta: “meu candidato em 2026 é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva”.

Ao defender um programa mínimo, “antifascista e nacional-desenvolvimentista”, Flávio Dino estabelece um paralelo entre o governo atual e o governo de Juscelino Kubitscheck, que também enfrentou tentativas de golpes militares, até para tomar posse, após eleito por um bloco de alianças no qual predominavam liberais (PSD), trabalhistas (PTB) e comunistas (PCB). Tanto a concepção de antifascismo da época quanto a agenda nacional-desenvolvimentista dos comunistas se baseavam nas teses apresentadas pelo líder comunista búlgaro George Dimitroff, no 7º Congresso da Internacional Comunista, em 1935, em Moscou, em resposta à ascensão do fascismo na Itália, do nazismo na Alemanha e ao militarismo japonês.

O centro da política dos partidos comunista, a partir de então, seria defender a democracia e a unidade da esquerda contra o fascismo. Todas as dissidências comunistas que surgiram após a dissolução da Internacional Comunista, em 1947, decorreram de divergências em relação ao informe de Dimitroff, inclusive o próprio PCdoB, fundado em 1962, por uma dissidência do antigo PCB que adotou as teses maoístas. A frustrada guerrilha do Araguaia, na década de 1970, durante o regime militar, foi inspirada na Revolução Chinesa. Ex-dirigente dessa legenda, Flávio Dino defende a tese de que o governo Lula deve trabalhar com um programa que tenha apoio da maioria do Congresso, não apenas da esquerda, e permanecer na defensiva em razão da correlação de forças políticas existente no país.

Estresse com Lira

“Lula está fazendo um governo mais ou menos como o de Juscelino, inclusive em relação à indústria automobilística”, exemplifica. Esse é o xis da questão, do ponto de vista político, a ideia de que a defesa da democracia é o que unifica a frente ampla formada para derrotar Bolsonaro, por 1,8% dos votos, apenas, é mais do que justa. Entretanto, não se aplica à agenda econômica nacional-desenvolvimentista, considerada ultrapassada por esses mesmos setores de centro, devido ao esgotamento do modelo de substituição de importações. Em economês, adensar demais as cadeias produtivas da indústria pode ser uma tragédia em termos de produtividade e competitividade, e restringir a integração da economia brasileira às cadeias de produção globalizadas. Trocando em miúdos, produzir carros populares movidos à gasolina quando o mundo está produzindo carros elétricos cada vez mais baratos é ficar para trás.

Flávio Dino se tornou uma estrela do governo Lula, mas está no epicentro do estresse de relacionamento entre o presidente da República e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), por causa da operação da Polícia Federal em Alagoas contra corrupção no MEC, na qual foi detido um assessor do poderoso líder do Centrão. Convidado por Lira, Dino foi à residência oficial do presidente da Câmara e explicou que a investigação foi iniciada durante o governo Bolsonaro, o mandado de busca e apreensão foi expedido por um juiz local e executado por um delegado da polícia federal que sequer sabe o nome, só tomou conhecimento da operação quando estava ocorrendo.

Segundo a ministro da Justiça, era sua obrigação dar os esclarecimentos a Lira, que em nenhum momento pediu que interferisse no caso. “Quem me conhece, jamais faria isso”. Nosso personagem é um potencial candidato a presidente da República caso Lula não queira ou não possa disputar a reeleição. Não fala isso com todas as letras, mas deixa no ar. O problema é que a concorrência é grande, inclusive dentro do governo, que tem quatro ex-candidatos a presidente da República, um dos quais de seu atual partido: o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB). Os demais são o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), a ministra do Planejamento, Simone Tebet (MDB), e a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede). (Correio Braziliense – 07/06/2023)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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