Fernando Gabeira: A queda de braço no Planalto Central

Apesar de todo o noticiário sobre a crise entre governo e Câmara, há indícios de que o País avança, apesar das divergências

O que acontece num país onde o governo é de esquerda e o Congresso, majoritariamente de direita? Essa questão colocada pelo resultado das urnas de 2022 ainda está para ser respondida no Brasil.

A hipótese mais comum é de um jogo de soma zero, em que os atores se neutralizem. Mas essa hipótese significa abrir mão das habilidades políticas e condenar o País à estagnação.

Apesar de todo o noticiário sobre a crise entre governo e Câmara dos Deputados, há indícios de que o País avança, apesar das divergências.

O primeiro passo, creio, é admitir que existem também convergências. Elas se manifestam em medidas econômicas – aliás, um campo em que as coisas estão melhorando, embora ainda não de forma espetacular ou mesmo sustentável. Foi aprovado o arcabouço fiscal e caminha-se para a aprovação da importante reforma tributária. As políticas de escalonamento e perdão de dívidas, do projeto Desenrola, assim como o estímulo à indústria automotiva têm grande chance de aprovação. Não entro no mérito desta última, mas o fato é que tanto governo como Congresso já se habituaram a incentivar a indústria automobilística, que, por sua vez, parece também ter-se habituado a pegar no tranco da ajuda oficial.

Mesmo com críticas a uma ou outra medida econômica, a verdade é que neste campo as convergências predominaram, e sempre que há muito ruído o melhor é enfatizar as convergências, porque isso não resolve, mas facilita a solução dos conflitos.

Um ponto que também ajuda é uma certa fidelidade entre instituições republicanas. O governo, por exemplo, quis alterar o marco do saneamento básico, votado pelo Congresso. É razoável que tenha perdido a batalha. Por outro lado, as alterações na estrutura do governo feitas pelos deputados são também um desrespeito entre Poderes. Afinal, eleito pela maioria com um programa, o presidente tem o direito de organizar os ministérios à sua maneira para realizar a tarefa prometida.

Outro aspecto que precisa ser revisado é a distribuição de cargos. O governo procurou ser amplo. No entanto, é cada vez mais difícil de definir quem é ou não representativo. A saída continua sendo a de checar os votos de apoio, quem traz e quem não traz votos. Esse quesito também é solucionável dentro dos critérios de presidência de coalizão.

O que parece realmente um impasse é o manejo do Orçamento. O chamado orçamento secreto era uma grande comodidade para os deputados e senadores. Não dependiam dos ministros. Ocorre que isso era ilegal e o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu. Quase R$ 10 bilhões ficaram ainda pendentes e parece que Arthur Lira quer usá-los como antes. Isso implicaria até confrontar uma decisão do Supremo.

Neste momento, o debate não é favorável a Lira. Estourou o escândalo dos kits de robótica nas escolas de Alagoas. O dinheiro desviado veio do orçamento secreto, por meio de emendas do próprio Lira, e um dos suspeitos foi seu assessor. Enfim, há muitos detalhes inconvenientes para quem aspira a distribuir verbas como fazia no passado. Isso sem contar outros escândalos que já surgiram a partir do orçamento secreto, mesmo sem uma auditoria rigorosa no uso de todos esses recursos.

Resolvidas essas questões, resta ainda um amplo terreno da luta franca, do perde e ganha típico do jogo da política. Não é uma tragédia para o governo perder uma outra votação. O que é necessário, neste caso, é saber que existem pesos e contrapesos, algo que escapa aos radicais imediatistas. No caso da Câmara, por exemplo, votar contra a decisão do Senado a possibilidade de ampliar a destruição da Mata Atlântica, certamente, implicaria um veto presidencial e, caso não existisse, um questionamento no próprio STF.

O tipo de correlação de forças que se definiu no período pós-eleitoral é um grande desafio. Pode, em caso de inabilidade, levar à paralisia, mas, por outro lado, tem chances de amadurecer ambos os lados.

Não se trata, é claro, de atenuar as diferenças que existem nem de negar a polarização. O que é necessário é uma nova visão para trabalhar com diferenças e polarização fora do período eleitoral, num momento em que o País não só precisa crescer, mas também solucionar alguns dos seus problemas fundamentais.

Isso coloca também para os observadores uma dupla opção: pôr fogo no circo ou lembrar com insistência de que é possível conviver e produzir com diferenças políticas tão sensíveis como as que existem hoje no País.

Enumerei apenas alguns fatores que podem desatar os nós. Muita coisa depende também do comportamento. A tentativa de seduzir as redes sociais leva para a Câmara uma tática sensacionalista, um tipo de agressividade que gera likes, mas não faz avançar o processo. Isso não tem solução, uma vez que grande parte dos deputados depende das redes para se eleger, sobretudo depois de 2018. A única saída é reduzir os danos, elevando o nível do debate e isolando, dentro do possível, as performances espalhafatosas.

Em síntese, vale a pena revisitar o pensamento de Dilma Rousseff para focalizar este embate governo-Câmara: “Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder”. (O Estado de S. Paulo – 09/06/2023)

Fernando Gabeira, jornalista

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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