Na democracia, ninguém está acima da lei, sejam torcedores, jornalistas, humoristas…
A indignação mundial com os ataques racistas ao jogador Vini Jr. até me deu alguma esperança de que o debate sobre a liberdade de expressão e a responsabilização civil das redes e provedores de conteúdo passe a frequentar os territórios da civilidade. Não é fácil. Os tempos andam um tanto hostis a um pensamento sistêmico. As argumentações “ad hoc” ganham o lugar do conceito, e não é raro que, convidado a explicar qual é o valor que orienta determinada escolha, o debatedor prefira contar uma historinha ou sair-se com um exemplo. Em vez da tese, a ilustração.
Esta Folha publicou na terça (23) um editorial sobre o caso Vini Jr. E de lá extraio este trecho: “Os organizadores e atores do futebol não deveriam aguardar a ação das autoridades de Estado para tomar providências”. É isso. Fala-se de atos que são considerados crimes também na Espanha. O mundo cobrou providências do governo, do Valência, da Fifa e da La Liga, entidade que organiza o campeonato. Os patrocinadores foram confrontados. Entende-se que todos esses entes respondem pelo espetáculo e têm o inarredável dever do cuidado.
Multiplicaram-se juízos de reprovação à omissão desses agentes privados, que vinham convivendo com a delinquência, como a dizer: “Não temos como controlar o que as pessoas dizem nos estádios”. Até parecia que haviam lido o artigo 19 do nosso Marco Civil da Internet: “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.
Alguém me prove que clube, La Liga, patrocinadores e Fifa não estão para o futebol como os “provedores de aplicações” estão para as plataformas e redes, e os torcedores, para o “conteúdo gerado por terceiros”. Não faltam, nessa relação, nem os patrocinadores, que assumem a forma de anunciantes. Assim, junto com o editorial, penso que não se deve “aguardar a ação das autoridades do Estado” —ou a “ordem judicial específica”— para que os criminosos sejam banidos dos estádios e, digo eu, das redes, sob pena da responsabilização civil.
“Ah, também você, Reinaldo, recorre a exemplos em vez de se fixar no princípio?” Nunca o abandonei: a liberdade de expressão não é um direito absoluto em nenhum domínio da experiência social. Estou a evidenciar o que, com efeito, está em debate num e noutro casos. Afinal, poder-se-ia indagar: “Como é que o Valência ou La Liga vão saber o que vai pela cabeça dos Garcías, Rodriguez e González?” Não se trata de interpretar mentes, mas de tomar providências efetivas para coibir crimes. Dada a impossibilidade da adivinhação —os Sanchez são sempre imprevisíveis—, tomam-se as medidas preventivas.
E é o que se vai fazer no Brasil, pela via congressual ou judicial. Dada a nossa legislação, manifestações que são criminosas nos estádios ou em qualquer lugar também o são nas redes e plataformas. No projeto de lei relatado pelo deputado Orlando Silva (PC do B-SP), os temas a ensejar o dever do cuidado estão especificados no artigo 11. O fundamento desta coluna: na democracia, ninguém está acima da lei, seja “big tech”, torcedor, jornalista, internauta ou humorista. “E os parlamentares?” Nem eles. A imunidade estendida às redes é irrelevante. O STF já decidiu que esta não é sinônimo de impunidade nem no Congresso. O jogo fica mais limpo.
PS: Para não dizer que não falei etc… O arcabouço será aprovado, e, segundo Roberto Campos Neto nesta Folha, “o mercado olha [que ele] eliminou completamente esse risco de a dívida simplesmente sair de controle”. De novo, o Apocalipse não virá. E, porque nunca vem, os profetas do fim do mundo continuarão a antevê-lo. Sim, tudo tem seu preço, Santo Deus!, e temos de cuidar das nossas florestas, que estão sob ameaça. “Devemos cultivar nosso jardim”, disse Cândido. É um princípio, não uma ilustração. (Folha de S. Paulo – 26/05/2023)