Luiz Carlos Azedo: Centro-direita empareda o governo Lula

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

A distribuição de ministérios a aliados sem ceder os poderes decisórios seria a causa das derrotas do governo

O cientista político Paulo Fábio Dantas, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBa), faz jus a um chiste do falecido economista Nailton Santos, colaborador de Celso Furtado e irmão do famoso geografo Milton Santos, para quem a sabedoria baiana é observar muito antes de decidir. “Somos mais antigos, não temos pressa. Olhamos para a direita (o Nordeste) e para baixo (o Sul Maravilha) antes de agir”, brincava. No alentado artigo intitulado Adensando névoa: o Poder Executivo num novo sistema de governo em construção (site Democracia política e novo reformismo), Paulo Fábio faz isso, a propósito da relação entre o governo Lula e o Congresso.

“No ponto a que pôde chegar o redesenho do sistema, sobressaem duas realidades incontornáveis. Uma, estrutural, é o maior empoderamento do Legislativo na “pequena política” (miúda, do dia a dia). Outra, contingente (embora duradoura), é a formação, também no âmbito do Congresso, de um bloco de centro-direita que atua, também, na grande política. Ele continua uma agenda de políticas liberais, retomada após o impedimento de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer.”

Segundo Paulo Fábio, o impeachment de Dilma encerrou seis anos de “experiência desenvolvimentista centrada numa lógica mais estatista”. O Congresso atual, sob a liderança do deputado Arthur Lira (PP-AL), atuaria sob o signo dessa continuidade, pragmática e programática, num processo em que o fortalecimento da centro-direita fora legitimado em sucessivas eleições.

O cientista político compara a política brasileira a um tobogã em ziguezague, no qual se alternaram as políticas dos governos Dilma, Temer e Bolsonaro. “No contexto pós-impeachment, a partitura programática mudou e se manteve liberal em economia, ao menos até Bolsonaro (que sempre tocou de ouvido e mal nessa seara) incinerar qualquer programa político sério para a economia, num esforço populista desesperado para se reeleger.”

“Quando se chega a Lula 3 — e após quatro meses de governo, ainda não se sabe a que veio o Executivo, quanto a que padrão de relações quer manter com o Legislativo na pequena política e a que agenda macropolítica afinal adere. Entre o viés centrista da sua área econômica e tendências — visíveis noutras áreas do governo e na retórica do presidente — de resgatar o voluntarismo do tempo de Dilma Rousseff, o tobogã em ziguezague ainda domina e segue rejeitando qualquer padrão estável de atitude política”, conclui.

Imobilismo

Estaria fora de cogitação a hipótese de retorno ao presidencialismo forte com poderes assimétricos do presidente em relação ao Congresso: “Dentro das balizas da democracia, esses ovos já estão fritos. Como se tem repetido amiúde, um sério problema é que Lula e seu partido parecem até entender, mas não aceitar como irreversível a nova realidade”. Assim, seria um erro comparar o atual presidente da Câmara ao deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ), que deu início ao processo de impeachment de Dilma. “A história atual começaria na interação entre Temer e Rodrigo Maia, em 2016 e 2017”, argumenta.

A distribuição de ministérios a aliados de centro e centro-direita sem ceder os poderes decisórios, que é “centralizado” no próprio presidente da República, e material, mais “concentrado” no PT, seria a causa das derrotas do governo no Congresso. A ponto de surgir um “Vai pra casa, (Alexandre) Padilha”, uma referência jocosa ao ministro das Relações Institucionais.

“No imediato, a retórica farta dissimula o imobilismo prático. Mas a névoa que espalha nubla a visão do presidente para o essencial, que é a busca da forma política de viabilizar, num congresso conservador, a governabilidade fiscal, em seguida a tributária, para cumprir, de fato, a pauta social que forma, juntamente com a defesa e o fortalecimento da democracia, o compromisso político que agregou uma frente de partidos e a sociedade civil, e convenceu um número suficiente de eleitores a votarem nele”, conclui Paulo Fábio.

De fato, o governo Lula está diante de um impasse, que parece não ter sido devidamente compreendido pelos articuladores políticos do governo. A acachapante derrota na votação do Marco do Saneamento foi uma espécie de síntese de uma situação na qual a agenda intervencionista do governo esbarrou na correlação de forças do Congresso e revelou, ao mesmo tempo, dissintonia entre o ministro da Casa Civil, o baiano Rui Costa, e os ministros dos partidos que compõem a ampla coalização democrática de governo.

O próprio Padilha admite que precisa entender melhor o que houve. Para isso, pretende reunir o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e os ministros André de Paula (Pesca), Alexandre Silveira (Minas e Energia) e Carlos Fávaro (Agricultura), do PSD; Jader Filho (Cidades), Renan Filho (Transportes) e Simone Tebet (Planejamento), do MDB; e Daniela Carneiro (Turismo), Juscelino Filho (Comunicações) e Waldez Góes (Desenvolvimento Regional), do União Brasil com suas respectivas bancadas.

Hoje, os deputados desses partidos seguem mais a orientação de Lira do que a de seus ministros. Somente um pacto com Lula pode reequilibrar essas relações, mas essa ainda não é a do PT. (Correio Braziliense – 09/05/2023)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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