Zeina Latif: A classe média sem pai nem mãe

A classe média, com reduzido capital humano e não elegível a transferências de renda, sofre mais com instabilidade da economia

O presidente Lula vem mudando seu discurso ao tratar da classe média, mas ainda há incompreensão sobre esse grupo, que é provavelmente o que mais se beneficiaria de um melhor funcionamento das políticas públicas.

Em maio de 2022, Lula afirmou que “a classe média ostenta muito um padrão de vida acima do necessário”. Essa descrição nem de longe é adequada para a realidade da nossa classe média batalhadora. Aproxima-se, na melhor das hipóteses, da classe média alta, um grupo pouco representativo.

Este ano, houve um importante ajuste em seu discurso, com a frase “nós temos que nos dirigir um pouco à classe média brasileira, porque no fundo ela tem sofrido muito com os desgovernos deste país.” De fato, a classe média, com reduzido capital humano e não elegível a políticas de transferência de renda, sofre mais com a instabilidade da economia — a gestão Dilma não deixou dúvidas.

Mais recentemente, o presidente derrapou ao afirmar que esse grupo não precisa tanto do governo, bastando uma “reforma tributária justa.” Ainda que o sistema tributário pese particularmente sobre o trabalhador de renda média e com carteira assinada, é crucial reconhecer que a classe média é muito prejudicada pela baixa qualidade dos serviços públicos.

A definição de classe média é tema controverso, na economia e na sociologia. Por falta de maiores informações sobre seus valores e a qualidade de vida das famílias, utiliza-se com frequência o critério de renda de um “grupo do meio.”

Utilizo como referência o conceito de classe C proposto por Marcelo Neri (renda familiar total entre R$ 3.230 e R$ 13.950, quando corrigida a preços de 2022), por estar associado à chamada nova classe média. Cabe, porém, mencionar que se trata de um intervalo de renda relativamente amplo (por exemplo, em relação ao Critério Brasil), possivelmente capturando um grupo bastante heterogêneo.

Segundo o especialista, entre 2003-13, 44,7 milhões de brasileiros ingressaram na classe C. A razão principal foi o maior ritmo de crescimento econômico. Mas o surgimento da nova classe média não foi um fenômeno exclusivamente brasileiro; ocorreu em muitos países emergentes.

O grande impulso veio da entrada da China na OMC, no final de 2001, estimulando o comércio mundial e produzindo o boom das commodities.

Há, no entanto, méritos do Brasil. Com a economia desarrumada, esse resultado não teria sido possível. Houve acertos na política econômica, com o reforço do tripé macroeconômico — meta de inflação, câmbio flutuante e disciplina fiscal — e as reformas microeconômicas — como crédito consignado, novas regras no mercado imobiliário e estímulos à formalização no mercado de trabalho. Houve ainda a contribuição, mesmo que marginal, das políticas de combate à pobreza.

A classe média atingiu 47,6% da população em 2013, mas encolheu para 43,1% em 2021, mesmo com o recuo da classe A/B, nos cálculos de Cristiano Souza. Em contrapartida, a classe D/E saltou de 46% para 51,6% no período. A inflexão ocorreu em 2016, na esteira da grande recessão do governo Dilma.

Quanto a 2022, ainda não há dados completos, mas, pela Pnad Contínua, que captura apenas o rendimento do trabalho (não o total), pode ter havido ligeira recuperação da classe C.

Seria muito bom se a classe média dependesse menos do Estado. Ainda mais em um contexto em que as classes mais altas são menos dependentes de serviços públicos, deixando de fazer pressão pelo aumento da qualidade da ação estatal, sobretudo na educação — o principal motor da mobilidade social.

Pior, diante das restrições orçamentárias do governo, os privilégios de grupos organizados distorcem a alocação de recursos públicos em seu favor.

É crucial que governantes tenham ouvidos mais abertos para as demandas, muitas vezes silenciosas, da classe média. Os ganhos vão além da cidadania. Serviços públicos de qualidade propiciam o aumento da produtividade da mão de obra e a ampliação do mercado consumidor, este estagnado para muito setores, principalmente de bens duráveis.

Isso sem descuidar da estabilidade macroeconômica (inflação e juros baixos), pedra fundamental da sustentação da renda desse grupo.

Em vez de ceder a pressões de grupos organizados por benesses estatais — o velho patrimonialismo disfarçado de interesse nacional —, melhor cuidar da classe média. E Lula já fez isso, no primeiro mandato. (O Globo – 19/04/2023)

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