Entrevista de Antônio Risério ao escritor Pedro Henrique Alves

Pedro Henrique: Com o lançamento do seu livro Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária, o senhor causou grande fúria em certos setores da esquerda brasileira. Muitos consideraram esse livro como uma espécie de traição ao seu passado engajado na eleição de Lula. Como responde a essas acusações?

Antonio Risério: Essas pessoas, além de ignorantes, são irresponsáveis: adoram deitar falação não só sobre o que não conhecem, mas também sobre quem não conhecem. Em 1998, quando dei meu voto pela reeleição de Fernando Henrique Cardoso, eu dizia às pessoas mais próximas de mim: vou votar em Fernando Henrique, para que da próxima vez seja Lula. Eu achava que era o caminho para Lula ser eleito e tomar posse numa boa, sem solavancos maiores. No final de 2001, me engajei na campanha de Lula, participei de uma reunião com ele e a cúpula do PT em Salvador, no apartamento de Duda Mendonça, no Corredor da Vitória. Até brinquei dizendo que achava ótimo aquela reunião ser num lugar chamado Corredor da Vitória. Em seguida, antes do carnaval, me mudei para um hotel em São Paulo, pago pelo partido, e mergulhei em tempo integral na campanha presidencial, trabalhando o dia inteiro, inclusive domingos e feriados. Mas, assim como nunca concordei “in totum” com as ideias de Fernando Henrique e do PSDB, também nunca concordei “in totum” com as ideias de Lula e do PT. Nessa campanha de 2002, aliás, Lula jogou no lixo parte fundamental da cartilha petista e, eleito, levou isso adiante, ao adotar a política econômica de Pedro Malan e outras políticas do governo tucano, ao tempo em que, da boca para fora e cinicamente, os petistas atacavam uma suposta “herança maldita” de Fernando Henrique, quando, na verdade, Lula incorporou a “herança bendita” que recebeu dele. Eu discordava sobre essas coisas e sempre manifestei minhas discordâncias em conversas e reuniões de campanha. Em minhas discordâncias, criticava a crucificação absurda de Fernando Henrique, com a militância dizendo que ele era “de direita” (imaginem: um dos caras centrais da nossa melhor sociologia marxista, exilado pela ditadura militar, etc.) e me batia contra muitos princípios e posturas dos ditos movimentos de minorias, hoje chamados identitários. Tive discussões com eles, inclusive, a respeito do programa de governo, no campo dos temas sociorraciais e pela insistência despropositada deles no discurso de vítima. Mas essa turma aí, hoje, não conhece, não lê nada, tem fantasias irreais com Lula, que parecem também não conhecer bem. Veja só: no livro “A Vítima Tem Sempre Razão?”, Francisco Bosco chama a atenção para o fato de que o meu “A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros” teve algum pioneirismo ao “se colocar frontalmente contra as lutas identitárias”. Ora, o livro foi escrito em 2005 e publicado em 2007, num período em que me engajei na campanha pela reeleição de Lula e participei, já sem o mesmo entusiasmo, da eleição da senhora Rousseff. Ou seja: desde 2002 tive posições críticas independentes e as expressei. Por escrito, inclusive. Algumas vezes, com análises, reflexões, argumentos. De outras vezes, apenas na base da intuição. Dou um exemplo. Quando tomei conhecimento do pré-sal e vi como o pessoal da cúpula do PT estava se movimentando com relação ao assunto, disse várias vezes em conversas na casa que sediava o marketing, em Brasília: “isso vai dar merda”. E deu. Mas já em 2011 eu estava bem afastado, trabalhando com Eduardo Campos, então governador de Pernambuco. Não só produzi análises e textos para Eduardo, realizando em equipe programas nacionais de televisão, como fiz o projeto do Cais do Sertão Luiz Gonzaga, que o governador implantou no Recife. Mesmo assim, ainda fiz a campanha de Haddad em 2012, embora já em termos somente profissionais. No ano seguinte, dei uma longa entrevista ao Estadão, no aniversário da cidade de São Paulo, que enfureceu o marketing e muitos petistas. Por um motivo simples. Nunca vendi minha cabeça ao marketing. Na entrevista sobre São Paulo, agi com a responsabilidade que todo intelectual sério deve ter, quando se dirige à sociedade. Critiquei abertamente Haddad e o fato de Dilma ter abandonado uma poderosa promessa de campanha, que era o projeto de fazer uma grande reforma urbana nacional. Critiquei duramente também o fato de o PT ter tomado o Ministério das Cidades das mãos de Olívio Dutra e entregue o dito cujo a um deputado direitista folclórico e corrupto de Pernambuco, no contexto da maior crise urbana da história do Brasil. Etc. Daí, a ruptura ficou escancarada. Mas essa gente prefere falar de “traição” porque, como já apontava Sérgio Buarque em “Raízes do Brasil”, só consegue pensar em termos de família, de clã, em vez de discutir as coisas em termos políticos e ideológicos. Uma dissidência político-ideológica deve ser tratada como tal e não na base do moralismo rastaquera da virtuosa família traída. Até me lembro da maldição de Sartre, em As Palavras, quando ele diz que família é como sarampo: a gente tem uma vez e não esquece nunca. Só que eu, eu mesmo, nunca pertenci à família petista. Fui aliado, só isso. Assim como fui aliado de Eduardo Campos, que me levou para fazer parte da equipe de sua campanha presidencial. Sim: em 2014, eu estava com o PSB. Pena que o acaso tenha tirado a vida de Eduardo, nosso melhor candidato. Ah, e essa turma que me ataca anda por aí agora tendo de lidar com o “companheiro Alckmin”, não é isso?

PH: No referido livro, o senhor afirma que o identitarismo é uma espécie de fascismo rearranjado. O senhor acredita que a esquerda brasileira esteja caminhando a passos largos e definitivos rumo ao autoritarismo consciente?

AR: Historicamente, a esquerda brasileira sempre foi, na sua maior parte, adepta do regime ditatorial. Esquerda democrática sempre foi minoria, exceção. Era a lição de Lênin, dos bolcheviques que consideravam a democracia um artifício burguês para perpetuar a dominação de classe. Antes dele, Engels criou a fórmula “ditadura do proletariado”, que tanto sucesso fez. O próprio Bernard Shaw defendeu a ditadura, dizendo não entender por que os norte-americanos a rejeitavam. Quando militei na esquerda clandestina, durante a ditadura militar, sempre fomos claros a este respeito: democracia, para nós, era palavrão. É ridículo ver Dilma Rousseff, que militou na mesma organização clandestina de que fiz parte, a Polop, dizer que, durante a ditadura militar, lutou pela democracia. É mentira. Nenhum de nós, na esquerda clandestina radical, lutou pela democracia. Nosso programa era substituir uma ditadura por outra, substituir a ditadura militar (ou “ditadura dos patrões”) pela ditadura do proletariado. E ponto final. Hoje, essa turma da militância identitária não só quer impor a ditadura do pensamento único, como também aponta para o totalitarismo. A diferença maior é que defendíamos abertamente a ditadura comunista. E essa gente, hoje, faz tudo isso no maior cinismo. Não assume nada. Nem a ditadura, nem seu racismo, nem seus anseios supremacistas. Não. Hoje, são ditatoriais em nome da democracia, assim como podem ser racistas em nome do antirracismo. Agora mesmo, criaram uma faculdade só para pretos na Bahia e a campanha publicitária diz que é a primeira faculdade “antirracista”… É o “orwellian twist” do discurso.

PH: Na sua opinião, essa mudança radical na práxis e nas ideias da esquerda se deu de forma consciente e sistemática, em busca de poder político e social – como defendem algumas alas conservadoras –, ou se trata antes de uma mudança orgânica na interpretação acadêmica e política das teses de Marx?

AR: Marx foi jogado no lixo, meu caro. Recentemente, o jornalista argentino Alejo Schapire, em entrevista à Letras Libres, a propósito do lançamento do seu livro La Traición Progresista, considerou que esta esquerda multicultural-identitária teve de dar um cavalo-de-pau formidável para jogar fora o antigo ideário marxista e chegar a se associar à intolerância, ao puritanismo, ao totalitarismo terceiro-mundista, ao obscurantismo, ao antissemitismo ou ao neorracismo de um modo geral. Em O Fim da Utopia, Russell Jacoby assinalara já a tremenda reviravolta: “Estamos assistindo não apenas à derrota da esquerda, mas à sua conversão e talvez inversão”. Voltando a Schapire, para ele, como para muitos outros (Pascal Bruckner, por exemplo), o ano de 1989 – ano da queda do Muro de Berlim e da fátua do aiatolá Khomeini colocando a prêmio a cabeça do escritor Salman Rushdie, em resposta à publicação de Os Versos Satânicos – se destaca como marco dessa “traição progressista”. Como momento em que se expõe claramente a fratura mundial entre duas esquerdas: a esquerda universalista, emancipatória e antiautoritária, à qual, com uma que outra ressalva, me filio – e uma “esquerda emergente”, de caráter identitário, cultora de uma curiosa e nefasta absolutização do relativismo epistêmico e antropológico, disposta a fechar os olhos a opressões étnicas e sexuais em sociedades africanas, árabes, islâmicas em geral ou asiáticas, e até a aceitar o obscurantismo religioso. Em todo o espectro político, foi essa vertente neoesquerdista, digamos assim, a que mais procurou (e pensa ter encontrado) justificativas para o atentado terrorista contra o jornal francês Charlie Hebdo, por exemplo, e agora aplaudiu a segunda chegada do Talibã ao poder, em Cabul. Com a desintegração da antiga União Soviética, o comunismo e o socialismo tradicionais entraram em parafuso, perdendo os seus pontos de apoio. Assim, a esquerda emergente, identitária, apostando em qualquer direção supostamente contrária ao “imperialismo ocidental”, adotou o muçulmano ou o negro, fantasiando-o de arquétipo do “oprimido”, como sucedâneo do proletariado. Uma aposta no escuro, claro. Como bem lembra o jornalista argentino, se Sartre e Foucault se deixaram fascinar pela revolução no Irã, “os jovens esquerdistas iranianos que foram seduzidos por aquela revolução, não viveram para contar sobre ela”. E estes são temas que não têm sido debatidos pela esquerda brasileira. Observando a paisagem, vejo não só que hoje temos uma esquerda de costas para o mundo – como nossos partidos políticos soi disant de esquerda estão mais próximos do Magazine Luíza do que de Leonel Brizola. A própria neoesquerda descambaria para o fanatismo. Para o fundamentalismo identitário. Mais Schapire: “O problema é quando a esquerda regressiva se converte em patrulha moral dedicada a vigiar e punir quem se aparta de seu revisionismo histórico anacrônico à luz da nova moral em voga [um neopuritanismo de esquerda!], de seu macartismo (cultura do cancelamento), da novilíngua e seus códigos. É uma nova esquerda obcecada por raça e sexualidade [“…uma investida essencialista que reduz as pessoas a suas identidades étnicas e sexuais”] e disposta a atacar a liberdade de expressão de democratas e universalistas”. Passa-se ao largo, aqui, do simples fato de que a liberdade de expressão não se resume, de modo algum, ao poder falar, mas também, e penso que principalmente, à possibilidade de que um outro possa apresentar uma réplica à sua fala. Porque o que mais temos hoje são milícias de militantes ferozes que querem calar toda e qualquer réplica. Isto é, autoproclamados libertários atuando como liberticidas, paradoxo do ataque à liberdade de expressão em nome da liberdade. Com o discurso dominante fazendo de tudo para enclausurar a dissidência no vazio e no silêncio. Como bem disse Theodore Dalrymple (no escrito “O Homem que Previu os Distúrbios Raciais”), “o real propósito daqueles que defendem a denominada diversidade cultural é a imposição da uniformidade ideológica”. Instaurou-se assim um ambiente policialesco no mundo das ideias e do comportamento. São as ações das milícias multicultural-identitárias, sejam digitais ou presenciais: polícia da língua, polícia do sexo, polícia do desejo, polícia das condutas, polícia das artes, polícia do pensamento.

PH: O senhor vem sofrendo inúmeros ataques porque criticou as novas teses da esquerda brasileira e mundial, muitos progressistas consideram seus textos como sendo “de direita” e preconceituosos. Recentemente, a Folha de São Paulo se recusou a dar espaço ao senhor a fim de responder às acusações que vem sofrendo. Mesmo após reiterados protestos de leitores, o jornal, no último dia 20 de março, não publicou seu texto no caderno de “Tendências/Debates” como disse que faria; além disso, 186 funcionários do jornal assinaram uma carta aberta contra o senhor, direcionada ao comitê editorial do referido jornal. Acredita que vem sendo sistematicamente censurado pela nova esquerda brasileira, em especial pela Folha de São Paulo?

AR: O que você chama de “nova esquerda brasileira” não merece esse nome: é cópia defasada da esquerda cultural ou acadêmica norte-americana da passagem da década de 1970 para a de 1980. Botaram uma falsa maquiagem tropical e só. A Folha entrou em pânico com a barulheira identifascista dos militantes empregados na redação e se dobrou à reivindicação pró-censura. Na prática, porque no discurso tratam de dourar a pílula. Eles se recusaram a publicar um artigo meu e ponto final. Ou eu dizia as coisas que eles queriam que eu dissesse ou nada feito, ficariam me enrolando “ad aeternum”. Agora, eles não têm a dignidade de assumir a censura. A conversa fiada é que se reservam o direito de “editar o texto” dos artigos de opinião que tratarem de “temas delicados”, isto é, trocando em miúdos, se dispõem a censurar qualquer artigo de opinião que critique duramente a esquerda identitária. Não sou criança. Então, a brecha lá é pelos colunistas do jornal que pensam por conta própria. E é claro que eles jamais vão censurar artigos de identitários ou pró-identitários. O estranho é que eu não imaginava viver para ver a esquerda propondo a censura (sei que ela fez e faz isso em todos os países que se dizem socialistas, de Cuba a este rosário de ditaduras corruptas a que dão sempre o nome absurdo de “repúblicas democráticas populares”), que, no Brasil, sempre foi coisa da direita. Então, hoje, vejo esquerda e direita irmanadas na prática da censura. A direita bolsonarista manda censurar um filme – a esquerda identitária manda censurar meu artigo. Tudo bem. Sejam siameses nisso, já que assim o desejam. Mas estarei sempre batendo na mesa, chutando o pau da barraca, diante desses procedimentos inimigos da liberdade de pensamento e de criação.

PH: Fernando Conceição, em texto publicado pela Folha de São Paulo, em 25 de janeiro, afirma que “As razões pelas quais Risério agora demoniza os negros –além de ‘antissemitas’ seriam ‘antiasiáticos’, ‘anticoreanos’ etc. – assemelha-se à obsessão presente em vários textos catárticos da psique racista”. Para muitos, em Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária, e no recente artigo publicado na Folha, “Racismo de Negros contra Brancos ganha força com identitarismo”, sua intenção foi justamente diminuir e atacar movimentos negros e demais minorias. Thiago Amparo, colunista da Folha de São Paulo, chegou a afirmar que seu texto é “supremacista”. O que o senhor tem a responder sobre essas acusações?

AR: Quando vi o primeiro nome próprio que você colocou aí, não li o resto da pergunta. Não perco meu tempo com a boçalidade semiletrada. Aliás, adoto também o seguinte procedimento: quando me vejo em meio a algum tiroteio, não tomo conhecimento de ataques contra mim. Leio com atenção os que discordam com argumentos consistentes. Ou seja: escolho criteriosamente meus adversários, que são pessoas com as quais é possível (e, às vezes, enriquecedor) conversar. Mas ataques, não leio. Meus amigos mais próximos sabem disso e não me importunam com os rabiscos dessas caricaturas espumejantes. Durante essa brigalhada recente, por exemplo, eu sabia que estavam me atacando violentamente. Só. Não li nada. Na verdade, quando estou numa situação polêmica, costumo ler coisas que nada têm a ver com o assunto. Desta vez, por exemplo, aproveitei para ler As Viagens de Marco Polo e a Epopeia de Gilgámesh, tal como ordenada por Sin-léqi-unnínni. E aprendi coisas, o que jamais aconteceria se eu fosse perder meu tempo com rabiscos de detratores profissionais, com militantes e milícias identitárias.

PH: O senhor já esteve naquilo que muitos consideravam ser o “núcleo duro da esquerda brasileira” da década passada, participou efetivamente das campanhas petistas e defendeu teses socialistas em suas atuações. Houve alguma espécie de revisão de ideias para que essas suas críticas surgissem agora com tamanho vigor?

AR: Não mudei nada. Continuo no campo da esquerda democrática e continuo pensando com independência, imune a dogmas, pressões e clichês. Eles também não mudaram, apenas deram um salto quantitativo espetacular, agregando milhares de milicianos para apedrejar quem não reza pela cartilha deles. Mas veja. Na Bahia, em 1981, quiseram fazer uma fogueira com meu livro de estreia, “Carnaval Ijexá”, em resposta às minhas críticas a certas propostas e programas dos movimentos negros. Foram dissuadidos. Contei isso num debate público em Belo Horizonte, no “dia da consciência negra” e uns militantes quiseram negar o fato. Mas o poeta Ricardo Aleixo, que é negro e estava presente ao debate, confirmou minhas palavras, dizendo que tinha ido a uma reunião onde a queima do livro tinha sido discutida (não sei se Ricardo confirmaria isso hoje, já que me dizem que se tornou militante identitário radical). Anos depois, embora tivessem me prometido uma discussão arrasadora, silenciaram sobre meu livro “A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros”, resolveram fazer de conta que ele não existia. Num encontro na universidade, também em Minas Gerais, uma comissária-professora foi contestada pelo historiador Amon Pinho, que citou “A Utopia…”, expondo o tema da escravidão de negros por negros na África, antes da chegada dos europeus. A comissária-professora não se deu ao trabalho de contestar meu texto, claro, limitando-se a dizer que a melhor coisa que Amon podia fazer era queimar o livro. O historiador ficou perplexo com aquela defesa esquerdista de um procedimento típico do nazismo e de outros autoritarismos. No Estado Novo, aliás, na Bahia, a direita fez uma fogueira com livros de Jorge Amado e Gilberto Freyre. Agora, esse negócio fascista de queimar livro foi abraçado calorosamente por uma esquerda também fascista. Mais recentemente, um rapaz me escreveu, via “facebook”, dizendo que fez mestrado sobre relações raciais no Brasil e nunca, na faculdade, alguém mencionou a existência de “A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros”. Ele me disse que leu o livro por acaso, tempos depois da defesa da tese e “foi um soco no estômago”. Ou seja, essa esquerda identifascista sempre fez de tudo para me silenciar, me cancelar. A novidade é que hoje não se trata mais de um grupelho. Esse maniqueísmo – primário como todos os maniqueísmos – mobiliza e dá sentido à vida de muita gente, quando não dá também prestígio e emprego. Então, o que vemos hoje são ondas de histeria produzidas por minorias de massa.

PH: O Brasil se encontra extremamente polarizado, e duas ideias políticas ganham proeminência no cenário atual, a esquerda identitária e o liberal-conservadorismo, na sua opinião, como serão os próximos anos políticos brasileiros?

AR: Vivemos hoje tempos de penúria ideológica. Não me lembro de nenhuma outra época em que o pensamento político brasileiro tenha sido tão pobre. Já tivemos uma esquerda brilhante, de Caio Prado Júnior a Ruy Mauro Marini, passando por Florestan Fernandes. E já tivemos, também, uma direita brilhante, de Gilberto Freyre a José Guilherme Merquior, passando por Nelson Rodrigues. Mas hoje já nem digo mais que o nível está muito baixo porque nem sequer nível vemos mais.

PH: Hoje em dia, o senhor assume publicamente alguma vertente política?

AR: Estou onde sempre estive, desde que me afastei da esquerda totalitária no início mesmo da década de 1970 e mergulhei tanto na viagem da contracultura quanto na luta pela redemocratização do Brasil. Por falar nisso, essa luta foi vitoriosa apesar de muita coisa, inclusive da intervenção desastrada e desastrosa da esquerda armada. Quem a conduziu foram, sobretudo, os democratas do velho MDB (não dessa merda de hoje), como Ulysses e Tancredo, setores progressistas da Igreja Católica, a CNBB, artistas e intelectuais igualmente compromissados com a democracia, jornalistas de verdade reunidos na ABI. De lá para cá, nunca abri mão da democracia, em seu sentido mais largo e genuíno. E me defino no campo da esquerda democrática porque não me limito a lutar por democracia política, institucional, mas também, no mesmo plano, por democracia social e cultural. É tão simples assim.

PH: Os colunistas da Gazeta do Povo, Bruna Frascolla e Eli Vieira, escreveram uma carta aberta denominada “Carta Aberta de Apoio a Antonio Risério e Oposição ao Identitarismo” em apoio ao senhor frente ao episódio de cerceamento da Folha de São Paulo, hoje a carta conta com quase mil signatários. Acredita que há um movimento articulado de reação ao identitarismo se iniciando no país? Se não, como unir liberais, conservadores e socialistas sensatos em torno dessa pauta?

AR: Não é um “movimento articulado”. São pessoas e grupos agindo por si mesmos, mas sem qualquer articulação maior entre si. Nossos partidos políticos se pelam de medo diante desses temas. Querem ampliar seus quadros e descolar mais votos. Debater, que é bom, nunca. Um querido amigo meu, o ex-deputado federal Domingos Leonelli, me disse certa vez, numa conversa em minha casa, na Ilha de Itaparica, que eu podia encarar e enfrentar os identitários, porque era um intelectual independente. Mas que ele e seus companheiros eram políticos – e, portanto, não podiam fazer a mesma coisa. Fiquei completamente perplexo com o que ouvi. Porque grandes políticos do passado, de Churchill a Trótski, sempre discutiram tudo. E hoje, nos Estados Unidos, até o senador Edward Kennedy investiu contra os grupos identitários, numa crítica bem lúcida. Então, não entendo isso. Agora, temos grupos e associações de mestiços se formando no país contra o fato de “os pardos” terem sido engolidos e virado massa de manobra dos racialistas neonegros. Tem uma frente na Amazônia, um grupo na Bahia, etc. Vejo isso com os melhores olhos possíveis. Temos, também, alguns jornalistas e intelectuais que batem pé firme em defesa da liberdade de pensamento. Artistas e professores, nem tanto, parecem mais intimidados pela fúria identitária. Agora mesmo, reuni um grupo de jornalistas e intelectuais e vamos lançar uma coletânea, A Crise da Política Identitária, a sair pela editora Topbooks, de José Mario Pereira. Então, não vejo articulação, mas iniciativas. Devem alcançar algum resultado, é claro. E espero, em todo o caso, que nossos políticos e partidos políticos tomem vergonha na cara e engrossem o caldo em favor da ampliação dos debates. Só assim vamos conseguir superar a imposição desse absurdo de que o Brasil é uma nação bicolor e não mestiça. Só assim poderemos sair do beco sem saída dos fundamentalismos fascistoides de direita e de esquerda. Mas, se tenho alguma esperança, confesso também que não tenho ansiedade alguma.

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