Luiz Carlos Azedo: Mulher não é objeto de cama e mesa

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

A contrapartida dos avanços e das conquistas dos mulheres vem sendo o recrudescimento da violência contra elas, inclusive dos feminicídios

Publicado em 1969, o livro Mulher, objeto de cama e mesa, de Heloneida Studart, fez um sucesso fabuloso durante toda a década de 1970, coroando anos de pesquisas e uma trajetória de mulher e jornalista, numa época em que havia ainda muito machismo nas redações, então um ambiente predominantemente masculino. No texto, Heloneida denuncia o tratamento dado à maioria das mulheres de sua geração: dona de casa, doméstica, “um ser desinteligente por natureza”.

Redatora de uma revista feminina, Heloneida observou que os temas abordados eram sempre os mesmos, do tipo como prender seu marido, realçar a própria beleza, reformar um vestido etc. Para ela, “a mulher era tratada como retardada mental”, era educada para ficar em casa, cuidar dos filhos, do lar e do seu macho. Até o estudo era visto como uma ameaça ao matrimônio e à família.

“À mulher moderna caberia mudar seu papel de mulher na sociedade, mas o seu esforço é considerado um fracasso. Agradar ao seu amor é tudo que interessa”, desabafava. A igualdade dos sexos firmada em lei não atravessava as paredes dos lares. Heloneida também criticava as mulheres que se orgulhavam da sua dependência e destacava que a pílula anticoncepcional as havia livrado do “papel de galinhas poedeiras”. Seu livro, em linguagem nua e crua, circulava quase como uma publicação clandestina, porque era visto como uma transgressão por pais, irmãos, maridos, noivos, namorados. Mesmo assim teve o papel de estimular as mulheres, jovens ou não, a não aceitarem mais aquela situação.

Façam o que eu faço, dizia Heloneida, consciente de que sua trajetória existencial era um exemplo de emancipação feminina. Ainda estudante do colégio de freiras Imaculada Conceição de Fortaleza, escreveu a sua primeira história: “A menina que fugiu do Rio”. Aos 16 anos, mudou para o Rio de Janeiro. Em 1953, publicou o seu primeiro romance, intitulado A primeira pedra. Em 1957 foi premiada pela Academia Brasileira de Letras com Diz-me teu nome.

Nos anos 1960, passou a trabalhar no antigo Correio da Manhã, um dos mais importantes jornais do país; depois, foi redatora na extinta revista Manchete, que também marcou época. Em 1969, foi presa por razões políticas; no presídio São Judas Tadeu, escreveu Quero meu filho e Não roubarás. O estandarte da agonia, um de seus últimos textos, é uma biografia da amiga Zuzu Angel, que morreu num acidente de carro quando investigava a morte de seu filho, Stuart Angel, sequestrado e morto pelo regime militar.

Violência

Com abertura, Heloneida Studart se elegeu deputada estadual no Rio de Janeiro em 1978, pelo MDB, com 60 mil votos, numa campanha política memorável, na qual foi a única mulher entre os parlamentares e candidatos liderados pelo senador Nelson Carneiro (MDB) a enfrentar cães e policiais militares numa passeata de campanha na Avenida Rio Branco, no Centro do Rio. Reelegeu-se para a Assembleia Legislativa por mais cinco mandatos, os últimos pelo PT.

Faleceu em 3 de dezembro de 2007, como uma das parlamentares mais atuantes e líder feminista de sua geração, em consequência de um infarto cardíaco. Deixou como legado o Centro da Mulher Brasileira, considerada a primeira entidade feminista do Brasil, da qual foi uma das fundadoras, além do Centro Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim), projeto de sua autoria.

Por ironia, em julho do ano passado, Heloneida Studart voltou a ser destaque na imprensa, porque o Hospital da Mulher de São João de Meriti, que leva o seu nome, fora palco de estupros sistemáticos de pacientes pelo anestesista Giovanni Quintella. Ontem, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que garante às mulheres o direito de indicar acompanhante durante consultas e exames para os quais haja necessidade de sedação. O substitutivo da deputada Bia Kicis (PL-DF) para o Projeto de Lei 81/22, do deputado licenciado Julio Cesar Ribeiro (Republicanos-DF), apensou outros sete projetos e recebeu amplo apoio das deputadas de todas as tendências. A proposta irá ao Senado Federal.

A contrapartida dos avanços e das conquistas das mulheres vem sendo o recrudescimento da violência contra elas, inclusive dos feminicídios, por parte daqueles que não aceitam ou não compreendem as mudanças de nosso tempo. Ontem, na abertura do evento Correio Debate — Combate ao Feminicídio: uma responsabilidade de todos, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, alertou para o fato de mesmo com uma lei que pune a morte de mulheres pelo gênero esses casos seguem em crescimento ano a ano. “Não é mimimi. As mulheres continuam morrendo pelo simples fato de ser mulher”, ressaltou a governadora do Distrito Federal em exercício, Celina Leão, durante o evento. “Temos, atualmente, 297 órfãos do feminicídio. É um crime continuado, não finaliza com a morte da mulher”, alertou. (Correio Braziliense – 08/03/2023)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎
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