Fernando Gabeira: Gasolina na fogueira do aquecimento

O episódio desta semana pode servir para esquentar o outro debate que vem por aí e que terá consequências decisivas no futuro da economia

Ao completar o segundo mês de existência, o governo Lula viveu um dilema: taxar de novo a gasolina ou abrir mão de R$ 28 bilhões em impostos.

Alguns setores da imprensa apresentaram a encruzilhada como se fosse um espaço onde lutavam a ala política e a econômica. Fiquei surpreendido com o tratamento. Será que me comportei como um tecnocrata quando, lá atrás, critiquei a decisão de Bolsonaro de isentar o combustível de impostos federais? Parecia para mim um absurdo fazer com que os pobres financiassem os ricos, os pedestres pagassem pela gasolina dos motoristas. Além disso, havia o argumento ecológico, o estímulo ao uso de combustíveis fósseis e, consequentemente, um calorzinho a mais no aquecimento global.

O novo governo assumiu com dois compromissos claros: favorecer os mais pobres e contribuir no combate ao aquecimento global. Apesar de entender os argumentos da chamada ala política, seria difícil para ela defender a dupla incoerência ao manter a desoneração do combustível.

Mas existe um outro fator que costumava balizar as decisões políticas. A análise da conjuntura, mesmo que não seja perfeita, era um instrumento de importância. Estes dois primeiros meses de governo foram cheios de surpresas – a maioria delas muito onerosa. Para começar, houve o quebra-quebra de 8 de janeiro. Foi preciso reconstruir as áreas atingidas e os prejuízos não se limitam a isso: prisões subitamente cheias, criação de força-tarefa para colher depoimentos e todo o esforço político para reforçar a democracia. É possível que parte desse dinheiro volte aos cofres públicos. Mas depende da justiça e leva bastante tempo.

Logo em seguida, veio a tragédia Yanomami. Foi necessária uma grande mobilização para evitar o extermínio de uma das mais importantes etnias amazônicas. Isso também representa custos em deslocamento, diárias, gasolina de aviação, hospitais de campanha, deslocamento de tropas.

As surpresas não pararam aí. Caiu o temporal no litoral norte de São Paulo. De novo, era preciso mobilizar no mínimo R$ 10 milhões para os custos de emergência, sem contar os gastos futuros e também o esforço de deslocar o maior navio da Marinha, com um hospital a bordo e grande tripulação.

No momento mesmo em que se vivia a tragédia no litoral de São Paulo, uma comissão oficial se deslocava para o Sul do País, onde uma seca impiedosa atinge a maioria dos municípios do Rio Grande. Só neste caso foi preciso mobilizar R$ 430 milhões para a assistência emergencial.

É possível dizer que esse pequeno inventário é uma visão estreita dos gastos, que existem outras grandes despesas, como as com os juros ou mesmo as emendas parlamentares, que realmente fazem a diferença. Mas a verdade é que essa sucessão de problemas – muitos deixados por Bolsonaro – não permitiu que o governo avançasse no ritmo desejado.

A política externa foi exceção. Lula foi ao Cairo falar sobre meio ambiente, visitou a Argentina e o Uruguai, encontrou-se com Biden nos EUA, vai à China em março e possivelmente visite a África. Não há nenhum presidente no mundo viajando com essa frequência. Mas isso pode ser atribuído ao isolamento em que Bolsonaro lançou o País.

Mas todas as viagens, além do discurso político, se esforçam também para atrair em investimentos, melhorar as relações comerciais – enfim, são um esforço para abrir um novo ciclo econômico.

Dentro desse contexto, abrir mão de R$ 28 bilhões nos impostos parece ser um luxo que esnoba a própria conjuntura difícil, pois grande parte das despesas iniciais do governo não estava no radar da equipe de transição, era imprevista.

A reflexão que extraio deste episódio do combustível é a de que o debate ficou um pouco mais pobre. Na verdade, o que estava em jogo eram duas visões políticas que poderiam ser desenvolvidas à exaustão, mas nunca reduzidas a um choque entre guardiões da popularidade e tecnocratas apegados exclusivamente ao equilíbrio fiscal.

A maneira como se arrecada e se gasta o dinheiro a partir de um programa consagrado nas urnas é, na verdade, um tema político. Bolsonaro fez demagogia com o preço da gasolina e, no entanto, não se elegeu. Mesmo se analisarmos em termos puramente econômicos, o preço da gasolina não é um fator decisivo no crescimento de um país. Se fosse assim, a Venezuela, que tem o menor preço do mundo, seria uma potência mundial e Hong Kong, que tem o maior preço do mundo, estaria em grandes dificuldades.

Dizem alguns economistas que o grande trunfo do novo governo será a reforma tributária, que pode ter um peso estimulante na economia, como foi o Plano Real. O fato de distinguir combustíveis fósseis de biocombustíveis na tabela de taxação mostra que o governo ao menos se abre para um ângulo decisivo na reforma que virá. Ela não será apenas moderna por combater desigualdades e suprimir gastos inúteis, mas também por aceitar a realidade ambiental num planeta em crise.

O episódio desta semana pode ao menos servir para esquentar o outro debate que vem por aí e, certamente, terá consequências decisivas no futuro da economia. Que seja o mais amplo e acessível à sociedade e nos ajude a crescer, algo que não fazemos, de verdade, há muitos anos. (O Estado de S. Paulo – 03/03/2023)

Fernando Gabeira, jornalista

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