Luiz Carlos Azedo: Três fatos, o rastro e a motivação dos golpistas

NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE

A denúncia do senador Marcos Do Val (Podemos-ES) de que teria se reunido, na Granja do Torto ou no Palácio do Alvorada, com o presidente Jair Bolsonaro e o ex-deputado Daniel Silveira, que está preso, para tratar de uma operação de inteligência na qual gravaria uma conversa comprometedora com o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes, a fim de afastá-lo das funções, parece um conto de carochinha, mas não é. Três episódios são objetivos para justificar uma grande investigação: primeiro, a troca de mensagens por celular entre Do Val e Silveira; segundo, o encontro com Bolsonaro e Silveira; terceiro, o relato feito do Do Val ao ministro Moraes, na sede do próprio Supremo.

Protagonizada pelo senador, em visível estado de estresse psicológico, a história parece um daqueles casos da literatura noir norte-americana, nos quais a vida real e a ficção se misturam, a ponto de não se saber o que é uma coisa e o que é outra:

— Acho que o sr. Hoover quer que isso aconteça. Acho que ele sente a coisa vindo.

— Nós todos andamos pensando nisso. Não é possível juntar um punhado de rapazes sem que alguém puxe o assunto.

— Pode ser feito. E pode ser feito de modo a parecer que nós não estamos envolvidos.

— Então, você está dizendo…

— Estou dizendo que é uma coisa tão tremendamente audaciosa que provavelmente jamais suspeitarão de nós. Estou dizendo que, mesmo que suspeitem, os que estão no poder jamais poderão ter uma prova conclusiva. Estou dizendo que será montado um consenso de negação. Estou dizendo que o povo quererá se lembrar do homem como algo que ele não era. Estou dizendo que iremos apresentar uma explicação, e que os que estão no poder irão preferi-la à verdade, mesmo sabendo que é falsa.

— Faça isso. Faça acontecer.

Esse diálogo descreve o suposto momento decisivo da conspiração para o assassinato do presidente John Kennedy, em Dallas, no romance policial Tabloide Americano, escrito por James Ellroy, mas que só se consumaria no começo do seu romance seguinte. A trama ocorre entre 1958 e 1963, envolvendo J. Edgar Hoover, o chefão do FBI; e Jimmy Hoffa, o presidente da Irmandade Internacional de Caminhoneiros, a chamada Teamster, cujo sindicato tinha 2 milhões de trabalhadores filiados e que “desapareceu” em 1975 (ligado à máfia, seu corpo jamais foi encontrado).

A narrativa descreve a vida mundana na Casa Branca e o glamour de Hollywood, tendo como elos Ava Garner, Frank Sinatra e Marilyn Monroe. No seu romance Dois mil em espécie, que começa com o assassinato do presidente dos Estados Unidos, em 22 de novembro de 1963, o autor de Los Angeles, Cidade Proibida tece os bastidores da suposta operação para encobrir os verdadeiros mandantes do crime, envolvendo politicos, policiais, agentes secretos, mafiosos e exilados cubanos.

Sem medo

Todo crime político é um caso de polícia, sobretudo uma tentativa frustrada de golpe de Estado. A história rocambolesca contada de muitas maneiras pelo senador Do Val é o elo perdido entre os atos de vandalismo praticados no dia da diplomação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 18 de dezembro, e a depredação dos palácios da Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro. Corrobora a suspeita de que a minuta do decreto de intervenção do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e anulação da eleição de 30 de outubro encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, que está preso, era mesmo parte do plano golpista. O fato de o ex-presidente Jair Bolsonaro não reconhecer a vitória de Lula e confirmar o encontro só reforça esse entendimento.

E agora?

Na sequência dos primeiros depoimentos de Do Val, nos quais acusou o ex-presidente Jair Bolsonaro de tramar a anulação da eleição e a intervenção no TSE, houve uma evidente mudança de versões para excluir o ex-presidente da República da trama e incriminar o ministro Moraes por omissão e prevaricação; supostamente, fora informado da reunião com antecedência, pelo próprio Do Val, o que o magistrado nega.

Na eleição à presidência do Senado, na qual o ex-ministro Rogério Marinho obteve 32 votos, os bolsonaristas exibiram músculos suficientes para abrir uma CPI para investigar os fatos ocorridos em 8 de janeiro, constranger ou incriminar Moraes. O resultado reforça a suspeita de que tudo foi armado para isso, mas é muito Tabajara, como diria o Fernando Gabeira. Entretanto, qual o golpe de Estado que não foi Tabajara no Brasil?

Em tempo:

Os romances policiais partem do princípio de que todo crime deixa um rastro e tem uma motivação. O diferencial do gênero noir, cujo criador foi Dashiell Hammett, com O Falcão Maltês, é que a história não ocorre num mundo perfumado, mas na vida como ela é. No ensaio literário A simples arte de matar, o escritor norte-americano Raymond Chandler explica que o herói noir surge porque “nas ruas sórdidas da cidade precisa andar um homem que não é sórdido, que não se deixou abater e que não tem medo”. A boa história policial é a aventura desse homem na busca da verdade oculta. Hoje, o ministro Alexandre de Moraes seria o herói de um romance noir. (Correio Braziliense – 05/02/2023)

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