Há sequelas do período Bolsonaro e a necessidade premente de que o governo mostre a que veio
Muita coisa ocorreu depois dos atos terroristas de 8 de janeiro. Prisões e revelações sobre os principais personagens da balbúrdia golpista, esforços governamentais para controlar a situação, indícios claros de que a articulação que levou àquela selvageria é muito maior do que se imaginava. Apuração de responsabilidades é um desdobramento lógico, indispensável para que se mude o rumo da situação. É impossível fazer de conta que nada aconteceu, que não há criminosos a serem julgados e presos.
A terra ainda treme. Além da tensão inerente ao pós-golpe, há as sequelas do período Bolsonaro e a necessidade premente de que o governo mostre a que veio. Desafios terão de ser enfrentados.
O primeiro diz respeito à questão militar, ao posicionamento institucional das Forças Armadas no novo quadro político. Enredam-se aí fios desencapados da história republicana, manipulações ideológicas que contaminaram parte dos militares nos últimos anos e expectativas de que o novo governo acerte os passos com Exército, Marinha e Aeronáutica. Discursos que acusem os militares de serem “intrinsecamente golpistas” criam arestas improdutivas. O caminho passará por negociações e ajustes difíceis, que não poderão desculpar erros e responsabilidades, nem ser reduzidos a “acertos de conta”. Para que o poder civil prevaleça, as Forças precisam funcionar como instituições de Estado, equacionar seus problemas internos, seus programas educacionais, sua “narrativa” para a caserna e para a sociedade. O governo deve ajudá-las a dar esse passo.
O segundo diz respeito à volta do crescimento, do emprego e da renda. Não há como saber se algumas dissonâncias entre a equipe de Fernando Haddad e o núcleo político-petista do governo se devem a futricas palacianas, a disputas por poder ou a divergências teóricas. A política econômica ainda não foi explicitada, em que pese Haddad defender a responsabilidade social e um novo arcabouço fiscal. Embates entre “desenvolvimentistas” e “fiscalistas” ficaram para trás, o que não significa que não possam ressurgir.
O terceiro desafio é mais complexo. Diz respeito à população, que até agora ainda flutua ao léu, à espera de sinais que a movimentem. Os milhões de votos recebidos por Jair Bolsonaro continuam vivos, traduzidos em desconfiança e má vontade com o novo governo. O 8 de janeiro causou repulsa generalizada, aumentou o capital político de Lula da Silva e o ajudou a dissolver cristalizações bolsonaristas. A rejeição ao PT crescerá caso o governo derrape ou fracasse na resolução dos problemas com que deve lidar.
O antipetismo está sustentado por um assustador processo de deseducação política e fanatismo. O 8 de janeiro contou com articulação profissional, mas também mobilizou pessoas sem convicções cívicas razoáveis, movidas por ideias rasas e desinformação, convencidas de suas próprias verdades. Deve ter havido torcida para que o golpe funcionasse. O bolsonarismo sempre se alimentou de um sentimento social de hostilidade à política e às instituições. Esse sentimento por pouco não venceu as eleições. Não desaparecerá de um dia para outro.
Falas imprudentes, brigas de ministros, comportamentos revanchistas, bravatas provocativas e pressa reformadora não só desgastarão o governo como poderão chamuscar os compromissos de coalizão ampla que demarcaram sua constituição. Não terão, por óbvio, qualquer efeito positivo, nem ajudarão a que se dissolva a rejeição ao PT e a Lula.
Por tudo isso, o governo terá de atuar com o máximo de equilíbrio, tanto para fora (a opinião pública) quanto para dentro, ou seja, para as correntes petistas, os partidos, o Congresso e o Judiciário. Terá de receber de braços abertos as críticas e sugestões que lhe forem dirigidas, até porque não possui nenhum mapa do tesouro. Seu desafio é estabelecer um novo padrão de relacionamento com o Legislativo e acalmar o fogo que arde nas beiradas. Uma base de sustentação é vital, mas ela não virá sem largueza de visão. Uma boa dose de flexibilidade do Executivo será indispensável, mas não poderá implicar a concessão de espaços administrativos que impeçam a definição das políticas governamentais e o planejamento de suas ações.
A moderação, o espírito conciliador e a inteligência política serão peças-chave. Assim como a firmeza e a determinação. Democracia implica conflito e disputa, não o sossego dos cemitérios. O jogo já está sendo jogado, mas os jogadores ainda buscam as posições definitivas. No Congresso, a oposição a Lula parece estar encolhida, mas os alinhamentos ainda não se completaram. Poderá surgir uma variante de direita distante do bolsonarismo, ou aparecer um centro afastado do “Centrão” e disposto a dar dignidade ao liberalismo. Qualquer dessas hipóteses mudará a correlação de forças e exigirá novos cálculos do governo.
O País precisa de paz. De um pacto com partidos e instituições, mas também de um contrato social que traga os brasileiros para um patamar mais elevado de convivência. (O Estado de S. Paulo – 28/01/2023)
Marco Aurélio Nogueira, professor titular de teoria política da Unesp