É preciso ensinar a ler cada um dos analfabetos adultos, como se fossem vítimas da tortura de viver sem saber ler.
Os discursos de posse dos novos ministros mostraram uma mudança nunca antes vista na política nacional. Em todas áreas, mostram que viramos uma página. Saímos do obscurantismo para o respeito à ciência, da insensibilidade social para o compromisso com os pobres, do descuido com o meio ambiente para a defesa da natureza, dos sonhos autoritários à participação democrática, da anti-cultura ao prestígio dos artistas, do desprezo à educação ao educacionismo explícito, do isolamento internacional à presença no mundo.
Cada um e cada uma dos ministros e ministras, sem exceção demonstraram uma visão de mundo diferente do atraso que prevaleceu nos últimos quatro anos. Com o Ministro Silvio Almeida ficou claro que os direitos humanos voltaram a ser preocupação nacional: saímos do esquecimento para a valorização de cada grupo “minoritário”.
No seu discurso de posse, o ministro citou cada grupo social que existe e precisa ser atendido com os respectivos direitos humanos que lhes são privados.
Talvez sem perceber, ao citar cada um deles, esqueceu o grupo que, de tão excluído, nem é considerado privado de direito humano. Brasil esquece que os mais de milhões de seus adultos analfabetos são privados do direito humano fundamental de saber ler seu idioma. Falamos “tortura nunca mais”, como se cada um destes dez milhões não fosse torturado cada minuto em que está acordado: não é capaz de ler o nome do filho, escrever uma carta à mãe, saber qual remédio está tomando ou dando a uma parente, nem mesmo se a bandeira em frente é do seu país. O analfabetismo não é visto como um chicote açoitando permanentemente dentro do cérebro de quem não pode se orientar porque não sabe ler. O analfabeto é um escravo que desde 1988 foi solto, mas até hoje não foi liberto, tem o direito de andar, mas não de se orientar no caminho.
Esta é uma das causas da permanência do analfabetismo, 130 anos depois da proclamação da república: além do abandono da educação das crianças para manter cavada a “última trincheira da escravidão”, o analfabetismo de adultos não é tratado como uma questão de direitos humanos. Considera-se fazer leis necessárias para cuidar das mulheres, dos negros, dos povos originários, dos LGBTQIA+, dos presos, mas não dos analfabetos. O ministro Silvio Almeida tem todas qualidades para tratar o analfabetismo como negação de direito humano fundamental, porque os analfabetos existem e são valiosos.
O Brasil precisa entender que tratar o assunto do analfabetismo como questão apenas de educação, é como considerar a tortura como questão apenas da saúde do torturado. É preciso cuidar dos ferimentos das vítimas da tortura, mas também termos leis que eliminem tortura no futuro. Da mesma forma, é preciso ensinar a ler cada um dos analfabetos adultos, como se fossem vítimas da tortura de viver sem saber ler, e também garantir que todas crianças aprendam a ler na idade certa, porque este é um direito humano fundamental. (Blog do Noblat/ Metrópoles – 08/01/2023)
Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador